20 anos de software público brasileiro
A luta pela soberania digital, a reinvenção do comum e os desafios de uma tecnologia para o povo
No próximo dia 14 de maio, às 10h (Horário de Brasília), o Brasil celebra, em transmissão online e aberta para o mundo, os 20 anos do Software Público Brasileiro (SPB). Mais do que um marco temporal, esta data representa uma conquista essencial na perene luta pela soberania digital do país e pela valorização da ciência e da tecnologia como bens comuns. Com impulso decisivo nos primeiros governos Lula, o Software Público nasceu das lutas travadas nos Fóruns Internacionais de Software Livre e segue hoje como um farol de resistência, inovação tecnológica nacional e, como nos lembra a Profa. Dra. Edméa Santos, especialista na Cultura Digital, um alerta fundamental diante dos rumos da digitalização acelerada.
A Semana do Software Livre, que abrange esta celebração, "não é apenas uma celebração das conquistas tecnológicas da comunidade hacker, científica, educacional e artística. Ela é, sobretudo, uma chamada de atenção para os rumos que a sociedade tem tomado diante da digitalização acelerada e da crescente dependência das plataformas controladas pelas grandes corporações", pontua Edméa Santos. Este momento nos convida a celebrar os 20 anos de resistência e invenção coletiva, mas também a gritar por socorro diante da exaustão provocada pela plataformização da vida, da educação e das relações humanas.
"Eu sempre digo: sou ativista. E entre as minhas causas está a defesa incondicional do software livre e do software público brasileiro", afirma Nelson Pretto, professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual da Bahia (UFBA) e um dos entusiastas dessa caminhada coletiva. Para ele, a celebração é mais do que simbólica: é estratégica. "A retomada dessa pauta é fundamental para que o país volte a investir em tecnologias voltadas ao bem comum, aplicadas em prefeituras, secretarias de educação, órgãos estaduais e até na iniciativa privada", ressalta Pretto.
O Digital como Infraestrutura Crítica: A Sociedade Já é Digital
Para compreendermos a importância estratégica do Software Público Brasileiro e a urgência do debate sobre soberania digital, é preciso reconhecer uma realidade incontornável: o digital já se tornou infraestrutura fundamental do mundo contemporâneo. Vivemos em um tempo que muitos teóricos chamam de pós-digital, onde a tecnologia não é mais uma ferramenta externa ou uma novidade a ser "incluída", mas parte entranhada da cultura, da economia e, crucialmente, da vida cotidiana.
"Não se trata mais apenas de discutir a 'inclusão digital', mas de entender que a sociedade já é digital: o digital estrutura os modos de produção, de comunicação, de ensino, de governo e de existência", reforça Edméa Santos. Frente a essa digitalização pervasiva, vivemos simultaneamente o fenômeno da exclusão digital, que se manifesta em desigualdades de o, mas também em lacunas de letramento tecnológico e, fundamentalmente, de soberania informacional. Debater Software Público e Livre é, portanto, debater o controle e o o a essa infraestrutura crítica que molda nossas vidas.
Software Livre e Software Público: Liberdade, o e o Enfrentamento Político da Cultura Digital
A diferença entre software livre e software público nem sempre é clara para o público geral. Ambos envolvem o ao código-fonte, mas com nuances importantes que refletem diferentes abordagens sobre o compartilhamento e o controle da tecnologia. O software livre, regido por licenças como a GPL e a MIT, assegura aos usuários quatro liberdades fundamentais: usar, estudar, modificar e redistribuir. Já o software público brasileiro, embora possa também ser livre, está ancorado juridicamente na Lei de o à Informação (12.527/2011). Esta lei exige que os dados e sistemas desenvolvidos ou utilizados pelo Estado sejam abertos e reutilizáveis, o que nem sempre implica em todas as liberdades garantidas pelo software livre tradicional, mas que força uma abertura essencial para a fiscalização e o reuso público.
Enquanto parte da comunidade científica debate a melhor terminologia - cibercultura ou cultura digital - Edméa Santos nos lembra que o fundamental é o enfrentamento político. Reconhecer que a digitalização é transversal, atravessando todas as camadas da sociedade e estruturando práticas pedagógicas, relações sociais e estruturas de poder, é o ponto de partida para qualquer ação transformadora. A integração entre as modalidades de software livre e público no Brasil configura uma das grandes forças desse enfrentamento, combinando a ciência aberta, a colaboração em rede e o compromisso com o bem público para criar um campo fértil para o desenvolvimento de inovações soberanas e sustentáveis.
Soberania Digital: Uma Autonomia Multidimensional
A Profa. Edméa Santos nos adverte que a soberania digital não pode ser compreendida apenas como independência tecnológica superficial. Trata-se de uma autonomia estrutural e política que exige um conjunto de ações coordenadas do Estado e da sociedade:
Investimento Público em Infraestrutura Nacional: Satélites, servidores, fazendas de dados - a infraestrutura digital não pode estar majoritariamente nas mãos de corporações estrangeiras. O controle sobre os "cabos" e os "data centers" é fundamental para a autonomia.
Produção e Controle dos Próprios Dados Nacionais: Em um mundo movido a dados, a capacidade de produzir, analisar e controlar as informações geradas no país é estratégica para o desenvolvimento e a segurança nacional.
Desenvolvimento de Tecnologias Próprias: O Software Público Brasileiro é um exemplo vital disso. Reduzir a dependência de soluções proprietárias estrangeiras estimula a indústria local e garante que os sistemas atendam às necessidades e realidades brasileiras.
Políticas de Informação e Formação Cidadã: E, principalmente, a soberania digital se concretiza na capacidade dos cidadãos de usar as tecnologias de forma democrática, ética e crítica. Isso exige políticas públicas de formação que vão além do simples o.
Benefícios Concretos e a Necessidade de Formação Crítica
Os impactos positivos da adoção e desenvolvimento de software livre e público são múltiplos e tangíveis para o Brasil, e se conectam diretamente com a busca por essa soberania multidimensional:
Redução de custos públicos: Diminuição drástica de gastos com licenças e contratos fechados com grandes empresas de tecnologia, liberando recursos para áreas prioritárias.
Maior transparência e segurança: Códigos abertos permitem auditorias externas, aumentando a confiança e a segurança dos sistemas governamentais e fortalecendo o controle social.
Desenvolvimento nacional e autonomia: Estímulo à indústria de software local, geração de empregos qualificados e redução da dependência tecnológica de soluções estrangeiras.
Inovação e participação: Fomento à inovação local e incentivo à participação da comunidade (cientistas, desenvolvedores, usuários) no aprimoramento dos sistemas públicos.
Educação tecnológica soberana: Promoção de uma base educacional que capacita cidadãos e profissionais a entender, usar criticamente e, fundamentalmente, modificar a tecnologia que utilizam.
Este último ponto, sob a ótica da doutora em educação e com a contribuição de Edméa Santos, é vital. A soberania digital só se concretiza plenamente quando acompanhada de uma política educacional robusta que forme professoras e professores para o uso crítico das tecnologias e desenvolva o pensamento computacional não como mera habilidade técnica, mas como ferramenta para a autonomia, a resolução de problemas e a organização em comunidade.
Essa formação deve, necessariamente, respeitar as diferenças culturais, de gênero, étnicas e territoriais que compõem o Brasil. Em um país historicamente estruturado pela hegemonia branca, masculina e cristã, a diferença muitas vezes é tratada como problema ou obstáculo. A política de Software Livre e Público e a formação que a acompanha devem ser um caminho para resgatar a diferença como potência, como motor de inovação e inclusão, e não como entrave.
Exemplos concretos dessa abordagem não faltam no cotidiano brasileiro: o uso disseminado do sistema operacional Linux e da suíte de escritório LibreOffice em órgãos públicos economiza bilhões; sistemas de gestão educacional e fiscal desenvolvidos por instituições como o Serpro, INMETRO e diversas universidades públicas, muitas vezes compartilhados, evitam desperdícios de recursos e promovem a cooperação entre municípios e estados, construindo essa infraestrutura e conhecimento partilhados.
Os Desafios: Superando Barreiras, a Cultura Proprietária e a Violência da Datificação
Apesar dos benefícios evidentes e dos 20 anos de existência, os entraves à ampla adoção dessas soluções persistem e se complexificam no cenário digital atual. A resistência de gestores públicos, frequentemente acostumados a softwares proprietários e a contratos de licenciamento que, por vezes, envolvem interesses alheios ao bem comum, ainda é um obstáculo significativo. A falta de formação técnica adequada - um reflexo direto do sub investimento público em educação e capacitação - para implementar e gerenciar sistemas abertos, bem como preconceitos infundados sobre sua segurança e estabilidade, continuam limitando o alcance das políticas de software livre e público. A integração com sistemas legados e a percepção (muitas vezes equivocada, alimentada por narrativas da indústria proprietária) de fragilidade no e técnico também são gargalos.
Mas os desafios vão além da gestão e da técnica. A datificação da vida - a conversão incessante de todas as nossas ações em dados - engendrou uma nova e sutil forma de opressão. Edméa Santos destaca que as universidades públicas e as instituições educacionais, espaços fundamentais para a produção de conhecimento e o desenvolvimento crítico (e deveriam ser baluartes do software livre/público), estão sendo plataformizadas, sujeitas a burocracias excessivas, controle algorítmico e uma velocidade artificial que ignora os tempos humanos de aprendizado e reflexão.
Essa violência, invocando o pensamento de Eugênio Trivinho, é operada por uma diferença brutal de velocidade entre as máquinas e os humanos. A digitalização contínua, sem pausa, nos ultraa psíquica, cognitiva e socialmente, gerando exaustão e sensação de impotência diante da vida acelerada e controlada por algoritmos opacos. Lutar pelo software livre e público, por sistemas auditáveis e controláveis pelo Estado e pela sociedade, é também lutar contra essa exaustão, por sistemas que sirvam aos humanos e não o contrário.
Propriedade Intelectual, Cultura Digital e a Luta Contra o Plágio: Um Paralelo Necessário
Num contexto global de intensa digitalização, os debates em torno do software livre se entrelaçam a outros embates culturais sobre propriedade intelectual, autoria e os limites do compartilhamento em um mundo conectado. Recentemente, o caso do artista japonês Hajime Sorayama, que acusou a cantora Beyoncé de plágio em elementos visuais, acendeu discussões acaloradas sobre apropriação cultural, autoria e originalidade no universo da arte - um debate que reflete as tensões da era digital sobre a criatividade e a cópia.
Tais temas ressoam, de maneira particular e contrastante, no universo do código. No mundo do software livre, a colaboração, a reutilização, a modificação e a atribuição correta da autoria original são pilares éticos e políticos fundamentais, regidos pelas licenças de uso. O que no mundo da arte pode se configurar como violação de direitos autorais e plágio (apropriação sem atribuição e permissão), no universo do software livre é encarado como construção coletiva e evolução, desde que respeitadas as licenças originais, a memória do trabalho anterior e a ética da redistribuição. Essa distinção é crucial para entender a filosofia por trás do código aberto e como ela propõe um modelo diferente de produção e circulação de conhecimento, um modelo mais alinhado com a ideia de um "comum" digital.
Celebrar, Resistir e Criar o Comum: Um Chamado Urgente à Ação Coletiva
Celebrar 20 anos de software público no Brasil é, acima de tudo, relembrar a necessidade urgente de políticas de Estado duradouras. Políticas que não apenas valorizem a produção tecnológica nacional e a inteligência coletiva de nossas instituições (universidades, institutos) e comunidades, mas que as coloquem como prioridade estratégica para garantir a soberania digital e o bem-estar da população em um mundo cada vez mais digitalizado. É reafirmar, com convicção, que a tecnologia não é uma ferramenta neutra: ela pode ser um instrumento de dependência, controle, exaustão e exclusão ou um poderoso meio de emancipação, soberania e inclusão produtiva.
Edméa Santos nos conclama: "Esta semana deve ser entendida como uma semana de socorro coletivo: precisamos agir, nos articular e nos posicionar diante do avanço das tecnologias de controle, da captura dos dados e da expropriação de nossa subjetividade". É uma semana de celebração histórica das conquistas de 20 anos, mas também de mobilização política urgente - por soberania, por justiça informacional, por sistemas públicos que sirvam ao povo e por um futuro digital que seja nosso, plural, crítico e inclusivo.
No dia 14 de maio, vamos celebrar juntos uma história que é feita por muitas mãos - das universidades, dos institutos federais, das comunidades hacker, dos educadores, dos ativistas e de todos aqueles que acreditam em um futuro digital mais justo e aberto. Que esta celebração seja, também, um vigoroso chamado à ação para fortalecer o software público e livre no Brasil, combatendo a plataformização predatória e promovendo uma cultura digital crítica e emancipadora.
Software livre e público não é apenas sobre código. É sobre democracia. É sobre o comum. É sobre futuro. E, fundamentalmente, é sobre a nossa soberania digital.
Chamado NetPopular - Formação Popular sobre a Internet no Brasil
Vamos construir uma Internet brasileira mais popular?
Em 2025, o Fórum da Internet no Brasil (FIB) completa 15 anos promovendo debates essenciais sobre a governança da Internet no país. Apesar dos avanços, acreditamos que esse espaço ainda pode - e deve! - ser mais diverso e conectado às realidades locais, fortalecendo-as para que participem ativamente das discussões.
Foi com esse espírito que criamos o NetPopular - uma mobilização em defesa de uma Internet verdadeiramente popular. Queremos fortalecer a presença de vozes locais no FIB15 por meio de uma série de ações antes e durante o evento, com foco especial no envolvimento de organizações e coletivos de Salvador e região.
Uma das principais iniciativas será a realização de uma formação online, com diálogos sobre a Internet no Brasil a partir de uma perspectiva crítica e popular. Os encontros serão espaços de troca e aprendizado coletivo, culminando em um encontro presencial em Salvador.
Convidamos coletivos, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, ativistas, educadores, artistas, pesquisadores e qualquer pessoa interessada a somar nessa construção. Vem com a gente?
Para participar dos encontros online, envie um e-mail para: [email protected] Convite prioritário para pessoas e organizações de Salvador e região.
O que é o NetPopular?
NetPopular é uma iniciativa para uma Internet feita por e para todas as pessoas - aberta, segura e democrática. Através de diversos aspectos nas áreas da tecnologia e ativismo digital, que unem em uma agenda comum a certeza de que a governança da Internet no Brasil precisa incorporar a diversidade dos territórios, das culturas e das vozes que compõem o país.
Nosso objetivo é abrir espaços de formação, escuta e articulação, conectando saberes técnicos e populares. Acreditamos no fortalecimento da soberania digital popular, das tecnologias livres e da conectividade como direito.
Celebramos os 15 anos do Fórum da Internet no Brasil e queremos somar forças para que cada vez mais vozes estejam presentes e representadas nesse espaço.
Formação NetPopular
Encontro 1 - O que é Governança da Internet?
Data: 15/05/2025, às 19h
Duração: 90 min
Formato: Online @faced
Objetivo: Refletir sobre o funcionamento da Internet e da Governança da Internet no país, a importância da Internet na garantia de direitos e seu papel como infraestrutura crítica.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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