A fraqueza dos EUA e o desmonte da União Europeia
Trump não criou o caos global, apenas acelerou o colapso de uma ordem internacional que já vinha ruindo desde os anos 1990
1.
Ao se completarem os cem primeiros dias do governo de Donald Trump, um importante site de notícias brasileiro publicou na primeira página, ecoando boa parte da imprensa ocidental, que “em 100 dias Donald Trump provocou o caos e abalou a ordem mundial”. Isso é apenas parcialmente verdadeiro, uma vez que a desmontagem da “ordem internacional” do pós-Guerra Fria começou muito antes que Donald Trump fosse eleito pela primeira vez, em 2016.
O desmonte começou em 1999, quando os EUA e seus aliados da OTAN desautorizaram as Nações Unidas, e atacaram e destruíram a Iugoslávia sem sua aprovação. E mais ainda, quando os EUA e a Grã-Bretanha atacaram o Afeganistão e o Iraque, em 2001 e 2003, contrariando a posição do Conselho de Segurança da ONU, principal órgão de “governança global” que eles mesmos haviam criado em 1945.
Esse processo de descrédito e desestruturação se agravou com o fracasso da “guerra global ao terrorismo”, declarada pelos EUA em 2001 e travada de forma quase contínua durante 20 anos, destruindo países e matando milhares de habitantes islâmicos do Oriente Médio, sem nenhum tipo de autorização da chamada “comunidade internacional”.
Não há dúvida de que o abalo definitivo da ordem vigente ocorreu quando as tropas russas invadiram o território ucraniano, depois de EUA, OTAN e União Europeia rejeitarem um ultimato russo que exigia a desmilitarização da Ucrânia e a revisão do mapa geopolítico europeu, que havia sido imposto à Rússia pelas “potências vitoriosas” e a OTAN a partir de 1991.
Hoje, quando se olha com a perspectiva do tempo ado, percebe-se melhor que no dia 21 de fevereiro de 2021, se deu a ruptura definitiva dessa ordem euro-americana. Naquele momento surgiu uma potência – dentro do sistema mundial – que ousou desobedecer e desafiar, com suas próprias armas, as tropas ucranianas e o poder militar e financeiro dos EUA, da OTAN e da União Europeia, envolvidos numa verdadeira “guerra por procuração” contra a Rússia.
Os russos alcançaram uma vitória militar exponenciada pelo fracasso do ataque econômico massivo desfechado por essas mesmas potências do G7 e da Aliança do Atlântico Norte. Duas vitórias que desmoralizaram definitivamente a ideia da superioridade militar e econômica do “Ocidente” com relação ao “resto do mundo”.
Quase na mesma hora em que o massacre israelense, absolutamente cruel e insano, da população palestina da Faixa de Gaza, feito com as armas e o financiamento dos EUA, e com a cumplicidade silenciosa de seus aliados europeus, liquidou também o que restava da ideia da “excepcionalidade moral” da “civilização judaico-cristã” que serviu de fundamento ético da hegemonia cultural do “Ocidente”.
2.
Foi nesse contexto, e após a grande crise financeira de 2008, que pôs em xeque a utopia da globalização econômica, que surgiu politicamente a figura de Donald Trump, o “grande jogador”. Sua vitória em 2016 e reeleição de 2024 são parte dessa mesma crise e desintegração da “hegemonia ocidental”. Sua figura é indissociável da sua crítica veemente do “globalismo liberal” e de sua proposta de reorganização da política externa americana a partir da força e do interesse nacional dos EUA, sem maiores pretensões morais ou catequéticas.
E não há a menor dúvida de que a política e a estratégia nacional e internacional de Donald Trump vêm contribuindo decisivamente para aumentar o caos e a desordem dentro e fora da sociedade americana. Mais do que isto, a intenção declarada de Donald Trump é destruir o que sobrou da “ordem liberalcosmopolita” ou “globalista” do pós-91, e apostar num novo tipo sistema de correlação de forças internacionais baseado apenas no poder e nas negociações mercantis, sem nenhum tipo de utopia universalista.
Deixando de lado o “histrionismo volátil” de Donald Trump, para poder entender melhor sua aposta geopolítica no campo internacional, o que mais se destacou nos primeiros meses do governo Trump foi exatamente sua crítica inclemente do “globalismo liberal” e o ataque direto contra seus próprios vizinhos, aliados e vassalos – como no caso do Canadá e do México, e do Panamá e da Groenlândia – e de forma ainda mais surpreendente e disruptiva, contra seus aliados europeus da União Europeia e da OTAN.
E ainda, seu ataque contra as instituições e organismos multilaterais criados depois da Segunda Guerra Mundial para istrar a hegemonia mundial dos próprios EUA. Culminando com o “tarifaço universal” de Donald Trump contra todos os países do mundo e, em particular, contra a China e a própria Europa, visando reorientar o comércio internacional e redesenhar o mapa produtivo do mundo.
De todas as suas iniciativas, entretanto, a mais heterodoxa foi sem dúvida a reaproximação e abertura de negociações com a Rússia, para acabar com a guerra da Ucrânia e trazer a Rússia para dentro dos circuitos produtivos, mercantis e financeiros do G7, na contramão da “russofobia” dos europeus. A tal ponto que chegou a reconhecer e denunciar a responsabilidade de Joe Biden e da OTAN pela própria Guerra da Ucrânia, antecipando a vitória inevitável da Rússia e defendendo a necessidade da paz para que os russos não simplesmente não acabem com a Ucrânia.
Deixou no ar, inclusive, a possibilidade de que os EUA abandonem, no médio prazo, seu compromisso de “defesa mútua” incondicional, com relação aos países da OTAN.
3.
Existe, no entanto, outro aspecto menos notado, mas igualmente importante desses primeiros 100 dias de governo: a percepção cada vez mais nítida de que Donald Trump não dispõe do poder que imaginou ter inicialmente, ao se propor a reorganizar o mundo de forma unilateral.
Foi o que aconteceu no ataque econômico contra a China, que encontrou uma resposta inesperada, dura e agressiva. Os chineses não se intimidaram nem se submeteram, e acabaram impondo aos norte-americanos um recuo e uma negociação em pé de igualdade, e nos termos exigidos pelo governo chinês.
Algo parecido com o que ou com a apressada tentativa americana de pacificação da Ucrânia, que entrou em choque com a resistência do seu próprio vassalo, e muito mais ainda, com a posição firme da Rússia em defesa de uma renegociação mais ampla do mapa geopolítico da Europa, que lhe havia sido imposto em 1991, e das próprias bases da nova ordem internacional que russos e chineses também consideram que deva ser reconstruída.
E o mesmo deve ser dito sobre a resistência demonstrada pelo Irã na defesa de seu programa nuclear, a despeito das reiteradas ameaças apocalípticas de Donald Trump. Para não falar do recuo do governo Donald Trump frente à corajosa resposta do México, ou mesmo seu fracasso em impedir que os países do seu “quintal latino-americano” comparecessem em peso ao 4º Fórum Ministerial China-CELAC, em Pequim, neste mês de maio, uma das mais importantes inciativas de cooperação multilateral do Sul Global.
Do nosso ponto de vista, a fraqueza demonstrada pelos EUA de Donald Trump tem contribuído também, e de forma decisiva, para o desaparecimento quase completo de qualquer tipo de limites, regras, instituições e árbitros capazes de impedir que a guerra se transforme no meio mais comum e natural de “solução” de todo e qualquer conflito internacional.
É o que está acontecendo no caso dos ataques de Israel contra o Líbano, a Síria, e o Iêmen; e no caso dos ataques do Iêmen contra os navios “inimigos” que atravessam o Mar Vermelho; e ainda dos ataques massivos dos EUA e da Grã-Bretanha contra o Iêmen, da mesma forma que na disputa fronteiriça entre a Índia e o Paquistão.
Assim mesmo, quando se olha com mais cuidado para essa “desordem no mundo”, percebe-se que ela se concentra muito mais nas zonas de “influência ocidental”, ou das potências do Atlântico Norte que dominaram o mundo nos últimos 200 anos, do que no “lado oriental” do sistema mundial. Sobretudo porque essa desordem vem sendo produzida pela erosão do poder militar e da liderança econômica e moral das “potências ocidentais”.
Por isso mesmo, pode-se afirmar que o fim do caos e da desordem no mundo só ocorrerá com a construção e consolidação de uma nova ordem internacional. Esse é um processo que ará, inevitavelmente, pela redefinição das relações entre esses “dois mundos”. Com certeza, haverá avanços e recuos, mas essa construção tomará muitas décadas e envolverá ainda muitos conflitos e guerras, mas já não será mais uma ordem tutelada pelos EUA, nem muito menos pela Europa. Isto acabou.
4.
O processo de unificação da Europa começou com a do Tratado de Roma, em 1957, e atingiu seu apogeu com a do Tratado de Maastricht, em 1992, um pouco depois da criação do Euro, em 1999, e da reunificação da Alemanha, em 1990.
E este foi, com certeza, um dos projetos utópicos mais importantes do Século XX: com a sua proposta de pacificar e unificar um sistema de poderes territoriais e de Estados nacionais que competiram e guerrearam entre si, de forma quase contínua, durante 800 anos. Destacando-se o fato de que este projeto de desmontagem desta verdadeira “máquina de guerra europeia” só foi possível depois das duas Grandes Guerras do século XX, que mataram cerca de 100 milhões de europeus.
Não é de estranhar, portanto, que este processo de construção da União Europeia tenha enfrentado grandes limitações e contradições, que bloquearam de forma quase permanente o seu avanço e a plena realização do seu ideal unitário. Para começar, a União Europeia foi sempre extremamente heterogênea e desigual, e nunca logrou constituir um “poder central” com capacidade de impor sua vontade e suas decisões estratégicas ao conjunto dos Estados-membros.
Menos ainda, depois de 1991, quando os europeus foram obrigados a incorporar, de forma apressada e desorganizada, os países do Leste Europeu, do antigo Pacto de Varsóvia. Além disto, a União Europeia não tem, e nunca teve, um orçamento fiscal unificado que lhe permita tomar decisões e implementar políticas econômicas e estratégicas, de curto, médio, e longo prazo, que lograssem diminuir a desigualdade interna dos seus Estados-membros. E além disto, depois de 1991, tornou-se uma “organização caolha”, que ou a ter uma moeda única, sem ter um orçamento fiscal unificado.
Por fim, mesmo depois da do Tratado de Maastricht, a União Europeia nunca teve uma política externa comum, soberana e ativa, e muito menos uma política de segurança e defesa que fosse istrada pelos próprios europeus. Na verdade, depois da Segunda Guerra Mundial, e mais ainda depois da do Tratado do Atlântico Norte, em 1949, o continente europeu delegou sua soberania militar para os EUA, e transferiu a responsabilidade de sua defesa para a OTAN.
Ou seja, do ponto de vista do Sistema de Westfália, os Estados nacionais europeus se transformaram em “vassalos militares” do EUA, submetendo-se à sua estratégia global de contenção da União Soviética e de combate ao comunismo ao redor do mundo.
Não é casual, portanto, que o Tratado de Maastericht só tenha sido possível depois do fim da Guerra Fria, que permitiu a unificação da Alemanha. Mas, paradoxalmente, o fim da URSS e a reunificação da Alemanha também podem ser considerados com o momento inicial de um processo inverso, de desmontagem progressiva da União Europeia.
Em grande medida, devido ao desaparecimento do “inimigo comum” que ajudou a mantê-la unificada até 1991, mas graças também ao “retorno” da Alemanha à condição “maior país”, e maior potência demográfica e econômica da Europa. Depois de ter sido o pivô das duas grandes guerras mundiais do século XX, na condição de inimiga direta da URSS, da França e da Grã-Bretanha.
5.
Em 2003, Alemanha se opôs abertamente à invasão do Iraque pelas tropas dos EUA e da Grã-Bretanha, levada à frente sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Logo em seguida, em 2005, a França, a Holanda, e a Irlanda rejeitaram um projeto de Constituição da Europa, proposto e engavetado pelo Conselho da União Europeia. Por sua vez, na crise financeira de 2008, a Alemanha voltou a divergir da França, mas sobretudo da Grã Bretanha que acabou tomando uma posição isolada dentro do grupo.
E uma vez mais, no mesmo ano de 2008, os europeus se dividiram frente à proposta norte-americana de incorporação da Geórgia e da Ucrânia à OTAN, apoiada pela Grã-Bretanha, mas rejeitada pela Alemanha. E em 31 janeiro de 2020, finalmente, a Grã Bretanha decidiu abandonar a União Europeia, abrindo um precedente que vem ecoando até hoje em vários outros países da comunidade.
Mas não dúvida que esta divisão interna da União Europeia adquiriu uma dimensão completamente diferente depois que os EUA, a OTAN e vários governos europeus se envolveram e apoiaram o Golpe de Estado que derrubou o presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovich. Começou ali a chamada “crise da Ucrânia” que se prolongou até o início das hostilidades militares, em 22 de fevereiro de 2022, quando as tropas russas invadiram o território ucraniano, e a guerra voltou para dentro da Europa, depois de 77 anos.
Sobretudo depois que os EUA e a Grã-Bretanha impediram as negociações de paz que estavam em pleno curso na cidade de Istambul, no mês de março daquele mesmo ano. A partir daquele momento o conflito ucraniano se transformou numa guerra europeia, entre os EUA/OTAN e a Rússia, que envolveu também um “ataque econômico” massivo da União Europeia contra a Rússia. Duas decisões que acabaram atingindo a própria Europa e contribuindo decisivamente para o desmonte atual da União Europeia.
Em primeiro lugar, porque o ataque econômico fracassou com relação aos seus objetivos fundamentais. A economia russa não parou de crescer, o governo russo redirecionou seus fluxos comerciais e financeiros para a Ásia, e a tecnologia de guerra dos russos deu saltos verdadeiramente impressionantes.
Enquanto a economia europeia entrou em crise e recessão, liderada pela economia alemã que segue estagnada há praticamente três anos, sofrendo um acelerado processo de desindustrialização. Em segundo lugar, porque apesar do apoio financeiro dos EUA e do apoio militar da OTAN, a União Europeia foi derrotada no campo militar, independente do tempo que ainda possa durar a resistência dos ucranianos.
6.
Três anos depois do início da guerra na Ucrânia, os governos das principais “potências ocidentais” envolvidas no conflito foram derrubados pelos seus próprios eleitores, na Itália, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha, e nos Estados Unidos. Com tudo isto, o golpe mais importante que atingiu em cheio a unidade da União Europeia foi sem dúvida a eleição de Donald Trump, com sua política internacional de aproximação da Rússia, de pacificação da Ucrânia e de distanciamento – quase hostil – dos europeus e da própria OTAN.
De um só golpe, a Rússia está sendo trazida de volta à “comunidade econômica ocidental” pelas mãos dos EUA, e a Europa está perdendo seu principal aliado e protetor atômico. Neste momento da derrota europeia, várias propostas vêm sendo colocadas sobre a mesa, apressadamente, sobretudo pela França e pela Grã-Bretanha, mas nenhuma delas tem a menor possibilidade de reverter no curo prazo, este quadro de derrota militar, crise econômica e insatisfação social.
Tramita neste momento uma acusação de corrupção contra a presidente do Conselho Europeu, a alemã Ursula von der Leyen, e a sua Representante para Negócios Estrangeiros, a jovem estoniana Kaja Kallas, é pouco representativa e parece inteiramente despreparada para o exercício do cargo. Por outro lado, os social-democratas perderam sua identidade, e hoje são partidos belicistas e ferrenhos defensores do “globalismo neoliberal” atacado por Donald Trump.
Enquanto os partidos conservadores e liberais querem apostar na remilitarização da economia europeia, mesmo sem contar com a unidade e os recursos necessários. E mesmo assim precisariam pelo menos de uma década ou mais para se equiparar à atual tecnologia militar da Rússia. Seu período de vassalagem militar foi muito longo e tomará muito tempo para que os europeus possam retomar em suas próprias mãos, a sua soberania. E não é improvável que neste tempo as “grandes potências” europeias voltem a se dividir, competir e a brigar entre si, como sempre fizeram nos últimos 800 anos.
Como já estão fazendo com relação às acusações de corrupção que pairam sobre a atual presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen. Foi isto pelo menos o que já ocorreu no caso do “acordo comercial” recém-assinado pelos EUA e pela Grã-Bretanha, que mais parece uma capitulação do que um acordo comercial. De fasto, a Grã-Bretanha submeteu-se à pressão dos EUA e correu na frente dos demais países europeus para conseguir , separadamente, o que o jornal Financial Times, descreveu como sendo “um pacto que está mais próximo de um pagamento de proteção a um chefe de máfia do que de um acordo de liberalização entre países soberanos”.[1] E o mais provável é que os demais países europeus acabem fazendo o mesmo, aprofundando o desmonte da União Europeia.
*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes) [https://amzn.to/3YBLfHb]
Publicado originalmente no Boletim no. 11, maio de 2025, do Observatório Internacional do Século XXI.
Nota
[1] Beattle, A. Financial Times, reproduzido no jornal Valor econômico, de 9 de maio de 2025, pág. A 17.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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