A Sombra da Anistia
STF tem chance histórica de romper com a impunidade da ditadura e impedir que o ado continue se repetindo no presente
O 8 de janeiro de 2023 entrou para a história como o dia em que a democracia brasileira foi mais uma vez posta à prova. A invasão do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto revelou as fissuras de uma nação que ainda convive com as sombras do autoritarismo. As imagens dos ataques não apenas expam um vandalismo sem precedentes, mas também evidenciaram a persistência de ideologias antidemocráticas — herança de um ado que nunca foi plenamente enfrentado.
Uma ruptura verdadeira só será possível quando o Brasil enfrentar a impunidade que persiste desde a ditadura, amparada pela Lei da Anistia de 1979. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem demonstrado firmeza ao responsabilizar os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro, sinalizando a gravidade dos crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito. Ainda assim, uma pergunta permanece: por que não tratamos como imprescritíveis os crimes permanentes — aqueles cujos efeitos se estendem no tempo, como a ocultação de cadáveres —, conforme prevê o direito internacional?
E, mais importante, por que seguimos reféns de uma lei elaborada pela própria ditadura, que até hoje protege torturadores e assassinos do regime militar?
A Lei da Anistia representa um dos maiores dilemas da redemocratização brasileira. Embora apresentada como um gesto de pacificação, ela garantiu, na prática, a impunidade de agentes do regime, permitindo que crimes como tortura, desaparecimentos forçados e execuções sumárias ficassem sem responsabilização.
Ao contrário de países como Argentina e Chile, que conseguiram avançar na responsabilização de crimes da ditadura por meio de reformas legislativas e julgamentos históricos — respaldados por contextos políticos distintos e fortes mobilizações sociais — o Brasil manteve o modelo de 1979, que promoveu uma anistia recíproca entre agentes do regime e opositores, apesar da assimetria entre crimes de Estado e atos de resistência. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou essa abordagem incompatível com o direito internacional, pressionando o STF a reavaliar a lei.
Apesar disso, o Supremo ainda debate casos pontuais, como crimes de natureza permanente, sem avançar para uma revisão mais ampla. É preciso reconhecer que há uma movimentação jurisprudencial em curso, ainda que fragmentada, sinalizando abertura para uma releitura constitucional e convencional da anistia.
Mesmo após a Constituição de 1988 — que classificou a tortura como crime inafiançável e insuscetível de anistia — a Lei da Anistia seguiu em vigor. A previsão constitucional, no entanto, aplica-se a crimes cometidos após sua promulgação, o que demanda uma interpretação que vá além da literalidade, à luz dos princípios dos direitos humanos e da jurisprudência internacional.
Em 2010, o STF entendeu que a lei foi recepcionada pela nova Constituição, sustentando-se em argumentos como o da segurança jurídica e da necessidade de estabilidade institucional no período da transição. Essa leitura permitiu que a norma coexistisse com a Carta Magna, embora sob duras críticas de setores jurídicos e acadêmicos que apontam incompatibilidades com seus princípios fundamentais.
A CIDH, por sua vez, reforçou que crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis, e o Brasil, como signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, tem a obrigação internacional de investigá-los.
Em 2010, o STF rejeitou a ADPF 153, proposta pela OAB, e manteve a validade da Lei da Anistia para crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura. No mesmo ano, porém, a Corte Interamericana condenou o Brasil por não investigar os desaparecimentos forçados da Guerrilha do Araguaia, declarando a anistia brasileira incompatível com a Convenção Americana. A sentença foi categórica: crimes permanentes — como a ocultação de cadáveres — não podem ser anistiados.
O Brasil é signatário de tratados internacionais que impõem o dever de punir graves violações de direitos humanos. Esses tratados, segundo o entendimento do próprio STF, têm status supralegal, situando-se acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição. No entanto, tratados aprovados com quórum qualificado pelo Congresso podem, conforme o artigo 5º, §3º da Constituição, alcançar status constitucional — o que reforça ainda mais o dever do Estado brasileiro de se alinhar à jurisprudência internacional.
Em disputas entre o direito internacional e interpretações baseadas na soberania legislativa interna, o Supremo historicamente priorizou a leitura doméstica. Ainda assim, cresce a compreensão de que a força normativa dos tratados de direitos humanos exige um novo olhar sobre a anistia e seus limites.
Em 30 de agosto de 2021, no Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado, uma mobilização da sociedade civil ganhou destaque no Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse dia, é apresentado o abaixo-assinado #ReinterpretaJáSTF, anexado aos processos das ADPFs 153 e 320, com a de acadêmicos, juristas e advogados de renome.
A ação faz parte da campanha homônima lançada pelo Movimento Vozes do Silêncio, que reúne diversas entidades, entre elas o Instituto Vladimir Herzog, o Núcleo Memória e o Coletivo RJ Verdade, Memória e Reparação. O objetivo da campanha é questionar a interpretação atual da Lei da Anistia, que tem sido vista como uma proteção para torturadores e assassinos, argumentando que sua continuidade permite a impunidade de crimes cometidos durante o regime militar e alimenta a perpetuação de violações de direitos humanos no Brasil.
O abaixo-assinado busca, ainda, homenagear as vítimas de uma série de abusos cometidos durante o período da ditadura militar, incluindo execuções sumárias, torturas, estupros, desaparecimentos forçados e prisões arbitrárias. A petição é um apelo para que o STF reavalie a aplicação da Lei da Anistia, corrigindo erros históricos que prejudicam a credibilidade da Justiça brasileira e reafirmando seu compromisso com a democracia e os direitos humanos.
O STF já está há mais de 11 anos sem analisar os recursos interpostos nas ADPFs 153 e 320. Esses processos têm o potencial de mudar os rumos da justiça de transição no Brasil e marcar um ponto de inflexão no enfrentamento da impunidade.
Em 2025, após uma década de adiamentos, o STF retoma a análise da ADPF 320, ação protocolada pelo PSOL em 2014, além de outros recursos, como os casos da Guerrilha do Araguaia e de Rubens Paiva, impulsionados pelo Ministério Público Federal (MPF). O julgamento ocorre em um contexto de crescente mobilização social e pressão internacional — impulsionado, por exemplo, pelo impacto do filme Ainda Estou Aqui, que reacendeu o debate sobre desaparecimentos forçados — e não apenas pelos eventos de 8 de janeiro.
O Supremo optou por julgar o tema em sede de repercussão geral, buscando firmar um entendimento vinculante sobre a imprescritibilidade de crimes de lesa-humanidade, em vez de tratar apenas da ADPF 320. Como argumenta o jurista Daniel Sarmento (UERJ), basta reconhecer que a Lei da Anistia não se aplica a esses crimes. Trata-se de uma interpretação constitucional e convencional que se alinha à jurisprudência internacional — que, desde 2010, só se fortaleceu com o avanço de países vizinhos na anulação de anistias semelhantes.
Enquanto o Congresso discute anistiar os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro — sob a justificativa de “pacificação” —, o STF já sinalizou, em decisões anteriores, que crimes contra o Estado Democrático são inafiançáveis e não íveis de anistia. Uma eventual nova anistia e a manutenção da de 1979 são juridicamente distintas, mas compartilham uma carga simbólica: a persistência da ideia de que a violência política pode ser esquecida em nome da estabilidade. Essa decisão será um divisor de águas: ou reafirmamos a democracia como cláusula pétrea, ou abrimos caminho para nova impunidade institucionalizada.
Reconhecer os limites constitucionais e internacionais da Lei da Anistia não é vingança — é justiça. Não se trata de revogar a lei por completo, mas de itir que crimes de lesa-humanidade não podem ser anistiados, conforme estabelecem tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e o entendimento consolidado no sistema interamericano. No entanto, setores conservadores e militares criticam a movimentação do STF como “revanchismo político”, especialmente diante de investigações envolvendo militares da ativa e da reserva, alguns ligados ao governo do mandatário anterior.
Ignorar esse debate é perpetuar um erro histórico que mina a confiança nas instituições e estimula a violência política. Como sustentam as doutrinas da justiça transicional, não há reconciliação legítima sem memória, verdade e responsabilização. Só com justiça — no ado e no presente — o Brasil poderá romper o ciclo de impunidade que ameaça sua democracia.
Enquanto os responsáveis pelos crimes da ditadura seguem impunes, a redemocratização brasileira permanece inacabada. O STF tem agora a chance de corrigir um silêncio institucional que custou caro à sociedade. Reconhecer que a anistia não alcança crimes de lesa-humanidade é mais do que uma exigência jurídica — é uma afirmação de compromisso com os direitos humanos e com o futuro democrático do país.
Se o Brasil quiser deixar de ser exceção na América Latina — onde países como Argentina avançaram com revisões estruturais, ainda que em contextos políticos diversos —, precisa dar esse o. Afinal, justiça não é o oposto da paz. Justiça é a sua condição mais profunda.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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