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      Ivan Rios

      Sindicalista, historiador, crítico de cinema, escritor, membro do Comitê Baiano de Solidariedade ao Povo da Palestina, graduando em Direito, militante dos Movimentos de Promoção, Inclusão e Difusão Cultural no Estado da Bahia

      44 artigos

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      "Contos da Lua Vaga após a Chuva": o reflexo niilista da condição humana

      Kenji Mizoguchi nos entrega uma obra-prima que transcende o cinema e se estabelece como um épico sem precedentes

      Contos da Lua Vaga após a Chuva (Foto: Reprodução)

      Kenji Mizoguchi nos entrega uma obra-prima que transcende o cinema e se estabelece como um épico sem precedentes, uma verdadeira epopeia que expõe, com brutal honestidade, a condição humana em sua essência. "Contos da Lua Vaga após a Chuva" não é apenas um drama histórico ou uma fábula sobrenatural, mas um relato grandioso e imortal sobre os dilemas universais que governam nossas vidas: a ilusão do progresso, o conflito entre desejo e realidade, a desconexão do homem com sua própria essência e o absurdo da existência. Mizoguchi constrói sua narrativa com a grandiosidade dos mitos e a profundidade das tragédias clássicas, tornando este filme um monumento cinematográfico que desafia o tempo e os limites da arte.

      O Japão retratado em "Contos da Lua Vaga após a Chuva" é o do período Azuchi-Momoyama (1573-1600), uma era marcada por guerras incessantes entre clãs rivais, a ascensão dos senhores feudais (daimyōs) e o colapso de qualquer estabilidade social. O caos da guerra define o tom da obra de Mizoguchi, evidenciando uma sociedade dilacerada pela violência e pela busca desenfreada pelo poder. Em meio a essa instabilidade, emergem valores atemporais e transcendentes que ainda dialogam com nossa contemporaneidade: o conflito entre ambição e humildade, o dilema do destino versus livre-arbítrio, e a luta pela preservação das relações humanas em um mundo que constantemente as desvaloriza. No entanto, esses valores, ao mesmo tempo que são universais, também são extemporâneos, pois se manifestam de formas distintas dependendo do contexto histórico. Hoje, a guerra não se dá por espadas, mas por informações e narrativas digitais, e os feudos deram lugar às bolhas ideológicas que reforçam ilusões de pertencimento e identidade.

      O filme foi gravado em 1953, oito anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e a ocupação norte-americana do Japão. Durante esse período, o país vivia uma profunda transformação: a reconstrução econômica, a ocidentalização de costumes e o questionamento de antigos valores tradicionais. Mizoguchi, um crítico feroz da sociedade japonesa patriarcal, usa a ambientação histórica como metáfora para refletir sobre os dilemas do Japão moderno, onde o progresso material ameaçava apagar a essência da cultura japonesa e as relações humanas eram cada vez mais sacrificadas pelo pragmatismo capitalista. O status quo da época era de um Japão em transição, onde as cicatrizes da guerra ainda estavam vivas, e a incerteza sobre o futuro moldava o pensamento de toda uma geração. Nesse sentido, "Contos da Lua Vaga" é tanto um lamento pelo ado quanto um alerta para o futuro — um reflexo eterno da fragilidade humana diante de sua própria criação.

      A jornada de Genjurô e Tobei reflete a busca incessante por um significado maior, mas também a tragédia de perceber que esse significado pode ser apenas uma quimera. O primeiro deseja riqueza, acreditando que a prosperidade lhe trará contentamento, enquanto o segundo sonha com a glória de ser um samurai. Ambos são vítimas de suas próprias ilusões, movidos por um impulso que os afasta do que realmente importa. Mizoguchi constrói essa narrativa de forma onírica, criando atmosferas sedutoras que, no fim, apenas reforçam a brutalidade do desengano. Genjurô não percebe que a Senhora Wakasa é um fantasma até ser tarde demais, da mesma forma que Tobei veste a armadura de um guerreiro sem compreender que sua conquista é vazia. A efemeridade da felicidade, um dos dilemas mais antigos da humanidade, é visível em cada escolha desses personagens. O que antes parecia um caminho para a realização torna-se uma cadeia de frustração e arrependimento.

      Dentro da psicologia junguiana, o filme é uma exposição do ego desintegrado. Genjurô encontra a Senhora Wakasa e se entrega à sua promessa de um mundo sem guerra e sofrimento, mas ela representa a Anima projetada – a parte feminina da psique masculina não integrada, um arquétipo distorcido que, em vez de iluminar, consome. Em sua cegueira, ele abandona Miyagi, sua esposa verdadeira, aquela que simboliza o amor genuíno e a conexão com o mundo real. Esse afastamento é reflexo de um dilema persistente: a desconexão do homem com aquilo que realmente importa, um conflito que hoje se manifesta na alienação das relações humanas, especialmente em um mundo dominado pelas redes sociais. Assim como Genjurô e Tobei foram seduzidos por símbolos de grandeza que, no fim, não tinham substância, hoje buscamos validação em métricas digitais e representações idealizadas de nós mesmos. A sociedade moderna substituiu os sonhos de riqueza e glória por seguidores e curtidas, apenas para descobrir que, como no filme, nada disso preenche o vazio existencial.

      O pano de fundo da guerra funciona como uma metáfora para o absurdo da existência. Mizoguchi não nos dá heróis ou vilões tradicionais; ao contrário, seus personagens são moldados por um mundo indiferente, onde o sofrimento é inevitável e o destino implacável. Camus nos ensinou que a vida não tem um significado inerente, e Mizoguchi ilustra essa ideia ao nos apresentar personagens que, ao perseguirem seus sonhos, encontram apenas desilusão. No fim, Genjurô retorna à sua casa para perceber que perdeu o que realmente importava – um destino que reflete a jornada da humanidade desde os primórdios. Estamos condenados a repetir os mesmos erros, a investir nossa energia em buscas fúteis, a acreditar que a felicidade está sempre em algo além do nosso alcance.

      A profundidade filosófica do filme tem suas raízes na obra "Ugetsu Monogatari", uma coletânea de contos do escritor Akinari Ueda, publicada no século XVIII. O livro, fortemente influenciado pela tradição japonesa de histórias sobrenaturais, mistura elementos históricos e fantásticos para explorar os dilemas humanos. Mizoguchi adapta esses contos com maestria, transformando-os em uma narrativa cinematográfica que mantém a essência do texto original, mas amplia sua carga emocional e existencial. Para aqueles que desejam conhecer a obra que inspirou o filme, edições traduzidas podem ser encontradas em livrarias especializadas ou em plataformas digitais dedicadas à literatura clássica japonesa.

      E se há algo que torna esse filme ainda mais significativo, é perceber o quanto o cinema contemporâneo se recusa a explorar essas questões com profundidade. Vivemos uma era de mediocridade cinematográfica, onde os filmes são criados para maximizar engajamento em vez de provocar reflexão. O pensamento crítico foi substituído por narrativas mastigadas, personagens sem alma, roteiros previsíveis e a recusa em confrontar os dilemas que definem nossa existência. Em "Contos da Lua Vaga após a Chuva", Mizoguchi nos trata como seres pensantes, enquanto Hollywood nos reduz a espectadores ivos de um espetáculo descartável. O que antes era arte, agora é produto.

      Este filme, portanto, não é apenas uma experiência estética, mas um grito contra as ilusões que nos governam. Um lembrete de que, no fim das contas, o ser humano continuará a construir sonhos apenas para vê-los desmoronar – porque essa é sua natureza, e essa é sua tragédia.


      TÍTULO ORIGINAL: 雨月物語 (Ugetsu monogatari) | Ano de Produção 1953 | Japão

      DIREÇÃO: Kenji Mizoguchi

      ROTEIRO: Yoshikata Yoda, Matsutarô Kawaguch.

      ADAPTAÇÃO: Baseado em contos de Ugetsu Monogatari, de Akinari Ueda.

      ELENCO: Masayuki Mori, Machiko Kyô, Kinuyo Tanaka, Eitarô Ozawa, Mitsuko Mito, Kichijirô Ueda, Ryôsuke Kagawa, Kikue Môri, Ichirô Amano, Saburo Date, Sugisaku Aoyama. 

      DISTRIBUIDORA: no Brasil, sua distribuição pode variar dependendo da época e das versões lançadas. Uma das distribuidoras que já trabalhou com o filme é a Leopardo Filmes, que atua no mercado de cinema independente. 

      PRODUTORA: produzido pelo estúdio Daiei Film, uma das grandes produtoras do cinema japonês da época. 

      DURAÇÃO: 94 min.

      SINOPSE: o filme se a no Japão do século XVI, durante um período de guerra civil. Genjurô (Masayuki Mori) é um oleiro que vive em um vilarejo com sua esposa Miyagi (Kinuyo Tanaka) e seu filho pequeno. Ele trabalha ao lado de seu cunhado Tobei (Eitarô Ozawa), que sonha em se tornar um grande samurai. Certo dia, ao vender cerâmica em uma vila próxima, Genjurô percebe que pode enriquecer com seu trabalho, enquanto Tobei deseja comprar uma armadura e uma espada para realizar seu sonho. Suas esposas, Miyagi e Ohama (Mitsuko Mito), tentam convencê-los a se contentar com a vida simples que levam, mas ambos são consumidos pela ambição.

      Quando o vilarejo é atacado por um exército, Genjurô e Tobei fogem de barco pelo lago. Temendo que o lago seja enfeitiçado, Genjurô deixa sua esposa e filho na margem e segue viagem com Tobei e Ohama. Ao chegar à cidade, Genjurô vende sua cerâmica e recebe uma encomenda da misteriosa Senhora Wakasa (Machiko Kyô). Ao entregar pessoalmente a mercadoria, ele é seduzido por Wakasa e a a viver com ela em sua mansão, sem perceber que ela é um espírito que o enfeitiçou. Enquanto isso, Tobei, por um golpe de sorte, é confundido com o assassino de um general inimigo e a a ser tratado como um grande guerreiro. Ele veste uma armadura e lidera soldados, mas sua esposa Ohama, perdida e desamparada, acaba sendo violentada por soldados e forçada a se tornar prostituta.

      Tobei reencontra Ohama em um bordel e, ao perceber o sofrimento que causou, decide abandonar sua falsa glória e retornar ao vilarejo com ela. Genjurô, por sua vez, é alertado por um monge de que Wakasa é um fantasma. O monge desenha caracteres sagrados em seu corpo, permitindo que ele escape do feitiço e volte para casa. Ao chegar, ele reencontra Miyagi e seu filho, mas logo descobre a verdade trágica: Miyagi morreu enquanto esperava por ele, e sua presença era apenas um último vestígio de sua alma. Genjurô, devastado, percebe que sua ambição o levou a perder tudo o que realmente importava.

      Este filme é um dos grandes clássicos do cinema mundial, figurando constantemente em listas dos melhores filmes de todos os tempos.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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