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      Sara Goes

      Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

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      (Des)construindo Michelle: de esposa-troféu à santa profissional

      Michelle Bolsonaro não é mártir, é projeto. Entre púlpitos, lágrimas secas e estratégias de poder, ela reescreve o papel da primeira-dama como arma política

      (Foto: IA)

      O que parece, à primeira vista, um esforço de articulação feminina dentro de um partido conservador revela-se como parte de um movimento coordenado, no qual Michelle Bolsonaro emerge como figura-chave. Desde que assumiu a presidência do PL Mulher, ela ou a conduzir reuniões com parlamentares em espaços reservados, cultivando um núcleo de influência próprio.

      Essa movimentação, segundo apuração de Robson Bonin, tem respaldo direto da cúpula do partido, que enxerga nela uma liderança viável para 2026, sobretudo diante do desgaste jurídico e da perda de tração política de Jair Bolsonaro. Paralelamente, o PL estrutura sua máquina de comunicação em moldes profissionais, promovendo seminários com comunicadores, estrategistas e parlamentares para unificar o discurso e ampliar a presença digital. No campo simbólico, Michelle avança com um repertório de afeto e fé cuidadosamente roteirizado, enquanto, nos bastidores, sua imagem é testada como possível sucessora do ex-presidente. Silas Malafaia já vocaliza essa preferência, argumentando que ela concentra apoios entre bolsonaristas, mulheres e evangélicos.

      A hesitação de Tarcísio de Freitas em assumir qualquer protagonismo eleitoral imediato e o próprio endosso de Bolsonaro à ideia de tê-la como cabeça de chapa com ele como conselheiro de bastidor alimentam esse cenário. Michelle, por sua vez, evita declarações diretas, mas sua movimentação revela um projeto em andamento. As reações temperamentais descritas por Mauro Cid, que envolvem explosões diante de críticas e ameaças à sua posição no clã, indicam que ela não é peça iva nem tampouco espectadora da engrenagem.

      É nesse ponto que também convém virar o espelho. Se a extrema-direita tem se especializado em fabricar ícones femininos ajustados ao seu moralismo militante, parte da esquerda segue demonstrando extrema desenvoltura para criticar mulheres em público, mesmo quando pretende fazê-lo em nome de valores progressistas. Michelle é frequentemente reduzida à caricatura antes mesmo de ser lida como engrenagem. Esse impulso, que combina desprezo estético, subestimação política e certo automatismo retórico, revela não apenas a força do personagem, mas também os vícios de uma crítica que ainda hesita em tratar a disputa simbólica como território de linguagem, emoção e gênero.

      Entre tentativas de reposicionamento estético e blindagens simbólicas, Michelle consolida sua trajetória. Enquanto Bolsonaro perde relevância, ela se move. E a engrenagem segue, agora com outra figura no centro.

      Fase 1: Esposa-troféu

      Em 2018, Michelle Bolsonaro foi lançada ao palco político como a primeira-dama ideal. Para um eleitorado faminto por padrões conservadores, ela encarnava o papel com perfeição, loira, sensual, roupas justas, beleza calculada, o tipo de mulher que enfeita, não que fala. Era a esposa-troféu ao lado do capitão reformado, uma presença ornamental, convocada para cenas cuidadosamente coreografadas.

      Ao contrário de outras mulheres públicas que exibem a maternidade como credencial política, Michelle manteve sua filha longe dos holofotes. Não havia fotos com brinquedos, discursos sobre superação, lágrimas em datas comemorativas. A maternidade, em sua narrativa inicial, foi silêncio. E esse silêncio dizia muito, ela queria ser percebida de outra forma. Nem mãe, nem esposa, apenas Michelle.

      Nos bastidores, corriam rumores sobre sua relação com os enteados, sobretudo Carlos Bolsonaro. Os conflitos nunca vieram à tona com clareza, mas o desconforto transbordava nos gestos, na ausência de interações, nas ausências em família. O núcleo duro do clã Bolsonaro raramente parecia incluí-la. O que se via era uma mulher isolada entre dois papéis que não ocupava de fato, o de mãe e o de esposa.

      Mas à medida que o governo se afundava em escândalos e a figura de Bolsonaro se tornava cada vez mais tóxica, Michelle começou a se descolar daquela imagem decorativa. A mulher que antes decorava o cenário ou a se mover com autonomia. Não bastava mais ser vitrine, e ela sabia disso.

      A relação conturbada com os filhos de Bolsonaro e a presença discreta de Laura em sua narrativa pública não eram apenas sinais de uma vida familiar disfuncional, mas parte de um movimento mais calculado. Conforme os escândalos se acumulavam e o governo se tornava insustentável, Michelle começou a pavimentar seu próprio caminho, com cautela. Distanciou-se da imagem de esposa submissa e evitou a maternidade como estratégia. Não queria ser o pilar do lar, mas uma figura autônoma, pronta para sair de cena, ou para ocupar outra, quando a queda se tornasse inevitável.

      Transição: O efeito Damares e a causa das mães atípicas

      A guinada de Michelle Bolsonaro rumo à figura de mulher evangélica abnegada, austera e engajada politicamente não se deu ao acaso. Esse processo de rebranding teve uma mentora clara: Damares Alves. Ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares foi mais do que uma aliada: foi arquiteta de uma nova Michelle, mais compatível com os valores do eleitorado evangélico conservador. Sob sua influência, a primeira-dama trocou os vestidos justos por t-shirts com mensagens bíblicas, abandonou o cabelo loiro em ondas para adotar cortes escuros e sóbrios, e suavizou até os traços do rosto: o preenchimento labial mais discreto sinalizava o abandono da sensualidade em favor da piedade. A performance pública foi modulada para encarnar a figura da esposa protetora, mãe espiritual e guia moral da nação.

      Durante a campanha de 2022, essa nova Michelle foi colocada à prova. Em um culto na Assembleia de Deus Vitória em Cristo, buscou dissociar-se das críticas ao marido e capturar o eleitorado feminino com uma frase cuidadosamente planejada: “Não olhe para meu marido, olhe para mim, que sou uma serva do Senhor, que dobro os meus joelhos e tenho entendimento do mundo espiritual.” A extrema direita parecia explorar essa dualidade: o homem endurecido e agressivo seria equilibrado pela mulher piedosa e maternal. Tentou-se apresentar Michelle como uma espécie de representante universal da mulher brasileira, uma síntese entre a esposa fiel e a mãe afetuosa.

      Mas a imagem soava artificial. O distanciamento entre a figura pública de Michelle e a realidade cotidiana das mulheres brasileiras minava a autenticidade do apelo. Diante disso, uma nova tentativa foi colocada em curso: direcionar Michelle a um público mais específico, afetivamente mobilizável e politicamente sensível, as mães atípicas. Nesse novo papel, ela ou a frequentar eventos caritativos cercada por crianças com deficiência, adotando uma estética do acolhimento emocional, mas sem qualquer aprofundamento nas políticas públicas voltadas a essa população. A estratégia apelava ao instinto maternal, ao desejo de empatia e reconhecimento, mas esvaziava a complexidade das vivências dessas mães, tratando-as como figuras satisfeitas com representações simbólicas.

      Esse movimento revela uma tentativa da extrema direita de suavizar sua imagem com uma face feminina e materna, sem alterar substancialmente sua agenda.  Michelle também foi moldada para encarnar o arquétipo que o momento político exigia. Transformou-se conforme a necessidade, sem identidade definitiva, mas com função clara: conquistar corações enquanto se mantém distante das estruturas que poderiam, de fato, transformar a vida das mulheres que ela diz representar.

      Michelle ainda operava no campo da dissimulação. Essa fase marca uma transição: entre a esposa decorativa e a mulher política, entre o silêncio e o cálculo, entre a mãe idealizada e a figura que se prepara, sutil, mas decididamente, para agir em nome próprio. Ainda não é a vingança, mas é o início da separação.

      Fase 2: Joelhos no chão e mão no gatilho

      No dia 20 de dezembro de 2022, Michelle Bolsonaro protagonizou uma cena cuidadosamente coreografada. Em silêncio, ajoelhou-se diante de um grupo de apoiadores reunidos em frente ao Palácio da Alvorada, acompanhando uma oração coletiva. Vestida com sobriedade e ladeada por Jair Bolsonaro, a primeira-dama incorporava, ali, o papel da mulher de fé diante de uma nação em convulsão. A poucos dias do fim do governo e com os ânimos ainda inflamados pela derrota eleitoral, o gesto parecia apaziguador, mas, em retrospectiva, carrega outro peso.

      Enquanto a bandeira nacional era arriada em clima cerimonial e os apoiadores mantinham silêncio simbólico, a movimentação nos bastidores apontava para outra direção. Naquele mesmo dia, Bolsonaro recebia aliados militares e civis no Alvorada, em reuniões que hoje integram a cronologia dos preparativos golpistas investigados pela Polícia Federal. A imagem de Michelle de joelhos, em um culto silencioso, não contrastava com esse contexto, fazia parte dele. Era a face serena de uma engrenagem que se articulava longe das câmeras, mas com total consciência simbólica do que representava.

      A conexão entre Michelle e os bastidores do golpismo foi citada na delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid. Segundo seu relato à Polícia Federal, ela integrava uma ala mais extremada do entorno presidencial, composta por políticos, assessores e militares que estimulavam Jair Bolsonaro a não reconhecer o resultado das eleições. Embora não houvesse uma estrutura formal, esse grupo se encontrava com frequência para defender medidas contra o sistema eleitoral e discutir alternativas autoritárias de resposta à derrota. Michelle, segundo a delação, não era uma figura lateral: participava das conversas e compartilhava da convicção de que havia ocorrido fraude no pleito.

      Ainda que a Polícia Federal não tenha encontrado provas materiais para incluí-la no rol de acusados, a presença de Michelle nesse núcleo ajuda a entender a função simbólica que desempenhava naquele momento. Enquanto ministros, generais e aliados apresentavam cenários de ruptura institucional, ela fornecia cobertura estética e afetiva para uma mobilização autoritária em curso. Era a oração como blindagem, a performance como distração.

      O culto público, a ausência de falas e a imagem reverente, tudo compunha uma narrativa de resignação que encobria, com aparência pacífica, um ambiente de tensão latente. Michelle aparecia como apaziguadora, quando na verdade já era peça consciente de um tabuleiro em ebulição. Se seu corpo estava ajoelhado, sua função política estava em pé, firme, discreta e estratégica. Em paralelo a essa imagem devocional, Michelle também protagonizou episódios de virulência política. Deu ordem implícita para ataques à vereadora do Recife Kari Santos e protagonizou cenas de hostilidade pública contra Janja, a quem tenta transformar em rival simbólica, como se quisesse replicar, no plano das mulheres, o antagonismo entre Bolsonaro e Lula.

      A mulher que rezava no gramado do Alvorada já sabia que o caos estava sendo redigido logo atrás da porta. Michelle se movia entre o sagrado e o político, entre a reverência pública e a dissimulação estratégica.

      Fase 3: A santa assume o púlpito

      Ao final do governo, Michelle Bolsonaro já não orbitava apenas como figura complementar. Com o marido cada vez mais isolado e juridicamente ameaçado, foi ela quem permaneceu em circulação, ganhando púlpito próprio, equipe, orçamento e palanque. A primeira-dama decorativa deu lugar à mulher que sobe em trio elétrico, discursa em tom messiânico e abraça a institucionalidade partidária. Michelle tornou-se, oficialmente, profissional do PL.

      Essa profissionalização tem se consolidado em múltiplas frentes: nas reuniões periódicas e reservadas com a bancada feminina do partido, onde atua como liderança legítima e articuladora de base, e também no esforço nacional de estruturação da máquina comunicacional do PL, com seminários estratégicos voltados à guerra de narrativas. A engrenagem já não opera no improviso, segue roteiro, cronograma e vocação permanente para campanha. Michelle ocupa, cada vez mais, o papel de rosto simbólico dessa nova fase. A crescente mobilização de setores como o de Silas Malafaia, que ou a defendê-la publicamente como opção viável para 2026, confirma que seu nome já circula como alternativa concreta ao vácuo deixado por Bolsonaro.

      O novo papel de Michelle como liderança feminina do partido simboliza não apenas sua emancipação política, mas também a tentativa de reorganizar o bolsonarismo em torno de uma imagem mais limpa, controlada e midiaticamente eficaz. Tornou-se presidente do PL Mulher, percorreu o país em caravanas evangelizadoras, participou de eventos de filiação e assumiu o papel de herdeira simbólica do espólio político do marido que, nos bastidores, já era tratado como cadáver jurídico. Enquanto Bolsonaro se calava ou fugia de jornalistas, Michelle sorria, discursava, agitava bandeiras.

      Mas esse engajamento não veio de forma espontânea. Ainda na campanha de 2022, Michelle resistia: recusava-se a gravar vídeos, faltava a eventos e se mantinha distante dos temas do governo. Foi só após um alerta direto de Damares Alves que a fez enxergar a real possibilidade de derrota que ela mergulhou de cabeça no projeto de reeleição. A mudança foi abrupta: da ausência ao protagonismo, da apatia à encenação fervorosa. Como se dissesse, sem palavras, que era preciso salvar o projeto, mesmo que fosse tarde demais.

      Mas essa ascensão calculada não significou ruptura real. Michelle continuou operando dentro da mesma lógica que sempre sustentou o bolsonarismo: polarização, ressentimento, moralismo e desinformação. O púlpito não era espaço de escuta, mas de comando. Suas falas, agora mais polidas, ainda carregavam ataques indiretos à esquerda, defesa de valores “cristãos” e convocações emocionais às mulheres evangélicas. Tornou-se, assim, a santa institucional, mas sem abdicar do fogo cruzado.

      A nova Michelle que sobe ao púlpito já não carrega o marido como referência central. A relação entre os dois, embora mantida sob o véu das aparências, é cada vez mais marcada pela distância. De um lado, Michelle consolida alianças políticas com figuras como Damares Alves, intensifica sua presença no PL Mulher e assume protagonismo no circuito evangélico, cercada por seu cabeleireiro de estimação, stylist e roteiristas de palco. Do outro, Jair Bolsonaro se isola em seu próprio universo masculino, um bunker de aliados leais, agendas paralelas e madrugadas em que o consolo vem em forma de sanfona, tocada por Gilson Machado em refúgios discretos.

      Para os defensores da família tradicional, o casamento segue intacto, afinal, a dissolução formal da união contrariaria a narrativa do lar cristão inabalável. Mas a separação emocional, espiritual e até geográfica entre Michelle e Jair já é tratada com naturalidade por seus próprios círculos. Não há crise pública, porque o script exige harmonia. E o fundamentalismo permite algumas “férias conjugais”, desde que a guerra cultural siga em curso. A verdade é que o casal virou uma empresa em que a aliança é menos sobre convivência do que sobre marca.

      A ausência de Michelle nos momentos mais críticos da derrocada de Bolsonaro não ou despercebida. Quando ele foi indiciado pela Polícia Federal na Operação Contragolpe, estava longe da esposa, refugiado em Alagoas, acolhido por aliados. Enquanto isso, Michelle seguia sua rota: templos, eventos, bastidores do PL. Como numa tragicomédia de verniz cristão, ela era a santa ocupada, ele, o zumbi político sendo embalado por cantores desafinados.

      A tudo isso somam-se episódios de tensão familiar mal resolvida, como os rumores de agressão verbal ou física vinda de enteados. que só reforçam o enredo: o núcleo familiar de Michelle é tão simbólico quanto funcional, e talvez o maior feito desse casamento seja mesmo sobreviver às aparências.

      Hoje, com Bolsonaro formalmente réu por tentativa de golpe de Estado e eclipsado por figuras em ascensão como Tarcísio de Freitas, e até mesmo por Michelle, sua imagem parece cada vez mais deslocada no cenário político. O silêncio de Donald Trump diante de seu antigo aliado, mesmo em ocasiões em que poderia tê-lo citado ou defendido, foi sintomático: o mito virou peso morto.

      Foi apenas durante a mais recente internação hospitalar que Michelle reapareceu ao lado do marido com ênfase emocional. Em um gesto simbólico e altamente midiático, lavou os pés de Bolsonaro no leito, enquanto o ex-presidente surgia visivelmente debilitado. Na saída do hospital, ela encenou um momento de comoção: preenchimento facial recém aplicado, facetas dentais novas reluzindo e um choro sem lágrimas. Ali, Michelle cumpria um roteiro:  o de viúva antecipada de um cadáver político que ainda respira, mas já não comanda.

      O gesto, ainda que de aparência íntima, foi amplamente divulgado e cuidadosamente registrado. A massagem nos pés do ex-presidente, realizada antes de uma caminhada monitorada pelos corredores do hospital, foi interpretada por muitos como um ato devocional. Era Michelle, outra vez, traduzindo sua política em performance.

      Não por acaso, em 2025, Michelle Bolsonaro começou a aparecer com força nas pesquisas eleitorais. Um levantamento realizado pelo instituto Paraná Pesquisas, em março, apontou que ela liderava com folga a disputa pelo Senado no Distrito Federal, alcançando 42,9% das intenções de voto. Além disso, seu nome já começa a circular como possível candidata à presidência da República em 2026. A especulação não é gratuita: Michelle tem apelo crescente entre o eleitorado feminino e, principalmente, entre as mães atípicas: nicho estratégico que ela vem cultivando com afinco, mesmo que de forma simbólica. Sua performance pública, cuidadosamente roteirizada, a projeta como alternativa viável em um campo da extrema direita que, diante do declínio do ex-presidente, busca um novo rosto para reencenar o projeto original com um verniz mais palatável.

      Para se aprofundar no tema continue lendo:


      Apêndice 1 - A ausência de Laura: entre o cuidado e o controle da imagem

      Em uma política marcada pela exibição constante de símbolos familiares, a ausência de Laura, filha de Michelle Bolsonaro, foi uma escolha ruidosa. Ao contrário de outros políticos que exploram a imagem de seus filhos para reforçar laços afetivos com o eleitorado, Michelle optou por manter a menina fora da cena pública. Essa decisão, que poderia ser interpretada como um gesto de cuidado e proteção, rapidamente se revelou também uma estratégia de controle da narrativa. Laura, enquanto presença ausente, reforçava uma imagem seletiva de Michelle: nem a mãe emotiva que chora em entrevistas, nem a militante materna das causas sociais. Sua maternidade foi um silêncio politicamente útil, que permitia à primeira-dama circular entre discursos religiosos, moralistas e institucionais sem se comprometer com a complexidade real do cuidado.

      A blindagem em torno de Laura, no entanto, começou a ruir com a aproximação das eleições de 2022. Em outubro daquele ano, Jair Bolsonaro protagonizou um escândalo ao dizer que “pintou um clima” com meninas venezuelanas de 14 anos. A frase, amplamente interpretada como de teor sexual, causou indignação pública. Michelle e Damares correram para defendê-lo, tentando relativizar a fala. Mas o esforço foi desmentido pelo próprio Bolsonaro, qquando jornalistas provaram que a expressão jamais foi usada fora do contexto sexual pelo ex-presidente em 128 lives. Naquele momento, Laura tinha 13 anos e o silêncio de Michelle diante dessa ironia cruel foi tão ensurdecedor quanto revelador.

      Pouco depois, um novo episódio expôs ainda mais o uso tático da filha: a falsificação do cartão de vacinação de Laura. Segundo investigações, o nome da menina foi inserido irregularmente em sistemas do Ministério da Saúde para simular que ela teria sido vacinada contra a Covid-19, permitindo ao casal Bolsonaro viajar aos Estados Unidos sem enfrentar restrições sanitárias. A filha, novamente, foi reduzida a um dado, um artifício, uma peça em um jogo que sempre privilegiou a autopreservação da família presidencial, mesmo às custas de sua criança mais vulnerável.

      Apêndice 2 - Uma facada pra chamar de sua

      Na eleição de 2018, a facada em Jair Bolsonaro foi o ponto de virada dramático que transformou um candidato polêmico em um mártir nacional. A imagem do homem ferido, calado pela violência, catalisou apoios, silenciou críticas e pavimentou o caminho para uma vitória construída sobre o corpo ensanguentado do mito. Quatro anos depois, a extrema direita tentou encenar algo semelhante para Michelle Bolsonaro, uma tentativa mal ensaiada de replicar o trauma fundacional da campanha anterior.

      O episódio ocorreu em 15 de outubro de 2022, quando tiros foram disparados do lado de fora da Igreja Assembleia de Deus Canaã, no bairro Sapiranga, em Fortaleza. No local, aconteceria um evento com a presença de Michelle e Damares Alves. O disparo, de acordo com as investigações da polícia cearense, foi motivado por uma briga entre dois homens em situação de rua, sem qualquer indício de motivação política. Ainda assim, Damares declarou publicamente, sem apresentar provas, que o atentado tinha como alvo Michelle Bolsonaro.

      A narrativa, rapidamente amplificada nas redes bolsonaristas, tentou recriar o clima de comoção e urgência que cercou a facada de 2018. Mas, diferente do episódio em Juiz de Fora, que mobilizou multidões e paralisou o debate político, o suposto atentado de Fortaleza escorregou na farsa: a ausência de feridos, a explicação oficial que desmentia qualquer motivação política e o encerramento apressado do evento deixaram a cena sem impacto. Nem drama real, nem roteiro convincente.

      Enquanto a facada de 2018 serviu como escudo para Jair Bolsonaro evitar debates, críticas e aparições públicas, o incidente em Fortaleza buscava blindar Michelle e legitimá-la como figura em risco, uma mulher devota sob ataque por sua fé e por seu papel. Mas a tentativa de construir uma nova mártir tropeçou na inconsistência dos fatos e na saturação simbólica de um país já exausto de espetáculos forjados.

      O episódio, mais do que um fracasso narrativo, revelou a obsessão bolsonarista por mitologias instantâneas. Uma busca contínua por novos corpos simbólicos a serem sacrificados em nome da cruzada moral. Mas, sem sangue, sem ferida e sem comoção, Michelle saiu ilesa e também sem o carisma traumático que havia impulsionado seu marido ao poder.

      Talvez Michelle Bolsonaro, ao lado de conselheiras oportunas e publicitários de ocasião, tenha de fato sonhado com uma facada para chamar de sua. Algo que a legitimasse não apenas como herdeira do bolsonarismo, mas como sua própria líder messiânica. Não conseguiu. Seu projeto, no entanto, continua em marcha, embalado por estética religiosa, empatia cenográfica e discursos cuidadosamente calibrados para públicos específicos.

      Apois

      Este artigo não é um elogio a Michelle. Ela é odiosa e corrupta, herdeira e cúmplice de um projeto autoritário que sabota a democracia por dentro e mina qualquer possibilidade de solidariedade coletiva. Sua construção como símbolo político é um alerta: Michelle não é apolítica, não é periférica, não é ingênua. É uma personagem calculada, moldada para parecer afável enquanto sustenta as estruturas mais duras da extrema direita.

      Michelle se move entre papéis: amante decorativa, esposa devota, mãe simbólica, santa performática. Michelle não rompe com o sistema, ela o perfuma. Seu grito não é contra a injustiça, mas contra a perda de poder. Não há tragédia redentora em sua trajetória. Só cálculo, encenação e risco real à democracia.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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