Desprivatização do Meio Ambiente e Justiça Climática
A propósito da 5ª Conferência Nacional do Meio Ambiente
Eduardo Galeano, no icônico texto “Quatro frases que fazem crescer o nariz do Pinóquio”, publicado há quase 20 anos, já desmascarava a farsa de um discurso ambiental que culpa a todos para não responsabilizar ninguém: ‘somos todos culpáveis pela ruína do planeta’ é uma falácia retórica que ignora o fato de que 20% da humanidade — os mesmos que controlam o capital, as corporações e as políticas de espoliação — consomem 80% dos recursos e geram a maior parte da devastação. Essa conveniente distorção da realidade, embalada em celofane verde, permite que o Norte Global continue explorando o Sul como zona de sacrifício, que empresas envenenadoras se pintem de sustentáveis e que a justiça climática seja reduzida a um mercado de créditos de carbono. Enquanto isso, os verdadeiros guardiões da terra, os povos e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e os pequenos produtores rurais são excluídos dos espaços de decisão sobre as políticas ambientais enquanto são confinados a territórios intoxicados. Este artigo não é sobre salvar o planeta: é sobre desprivatizá-lo, a partir da superação de um sistema que transforma até a água em moeda de troca e a vida em custo operacional. Porque, como nos lembra Galeano, a natureza não está ‘fora de nós’ e a questão ambiental exige mais do que reciclagem: exige revolução.
A crise climática é, antes de tudo, uma crise de modelo. O capitalismo desenfreado, aliado ao neoliberalismo, transformou a natureza em mercadoria, aprofundando desigualdades e criando zonas de sacrifício onde populações marginalizadas, majoritariamente negras, indígenas e pobres, arcam com os custos da degradação ambiental. Enquanto os países desenvolvidos se beneficiam do extrativismo e da exploração desregulada para assegurar a manutenção de níveis de consumo insustentáveis, nações em desenvolvimento sofrem as consequências mais brutais da emergência climática em um modelo de sociedade que reproduz a lógica colonial. Esse cenário nos impõe a urgência da desprivatização do meio ambiente, entendida não apenas como a retomada coletiva dos bens naturais, mas como uma ruptura com a perspectiva de mercado que precariza a vida. E a desprivatização a pela luta por justiça climática, que é interseccional, pois raça, gênero, território e classe estão no âmago dessa crise. É do racismo ambiental, das opressões de gênero, da exploração de classe e das desigualdades sociais e territoriais que resultam as zonas de sacrifício, fruto de um sistema que historicamente relegou populações vulneráveis a territórios contaminados, sem o a água potável, ar puro ou silêncio... A água, direito universal, tornou-se moeda de troca política e commodity, seja na indústria da seca, que lucra com a escassez, seja na gestão privatizada que exclui os mais pobres. O neoliberalismo aprofundou essa dinâmica ao transferir para o mercado a responsabilidade pela gestão ambiental, resultando em políticas que privilegiam o lucro, reuniões para elaboração de planos que, ironicamente, não saem do papel e acordos internacionais que são pactuados apenas para serem revisados a cada novo encontro global.
A justiça climática não se resume a ajustes tecnocráticos e somente a luta social trará respostas concretas aos desafios ambientais, pois certamente a saída para a crise não virá do mercado nem de governos capturados por interesses corporativos. A transformação ecológica só será possível com a democratização radical das decisões ambientais: conselhos gestores, assembleias populares, políticas públicas elaboradas e implementadas com participação e controle social, viabilizando a inclusão de vozes historicamente silenciadas, como os povos e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, moradores das periferias, mulheres, jovens e crianças... enfim, as vozes essenciais para combater a catástrofe ambiental e romper com a hegemonia predatória do capitalismo. A participação social não é apenas um mecanismo institucional, mas um projeto político estratégico que contrapõe aos interesses do capital. Espaços deliberativos garantem transparência, o à informação e à formação política e poder real à sociedade civil, aos movimentos sociais e às comunidades, evitando que o interesse público e a atuação do Estado sejam cooptados. A desprivatização do meio ambiente requer, assim, a construção de uma esfera pública forte, na qual os conflitos distributivos sejam resolvidos coletivamente e não pelo mercado.
Resta evidente que a emergência climática não é um problema técnico, mas político e, portanto, aprofundado pelas desigualdades estruturais. Enfrentar o colapso do clima por meio da luta pela desprivatização do meio ambiente e pela garantia de direitos socioambientais só é possível numa perspectiva democrática de construção de políticas públicas efetivas. Foi nessa conjuntura que ocorreu a etapa nacional da 5ª Conferência Nacional do Meio Ambiente, em Brasília, nos dias 6 a 9 de maio de 2025, com o tema: “Emergência Climática: O Desafio da Transformação Ecológica”. E enquanto a revolução climática é uma utopia, resistimos e construímos alternativas coletivas, refletindo em torno de Galeano: “segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se vestir jamais descascavam o tronco inteiro, para não aniquilar a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansar a terra. A civilização que vinha impor as devastadoras monoculturas de exportação não podia entender as culturas integradas na natureza, e confundiu-as com a vocação demoníaca ou a ignorância. Para a civilização que se diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que era preciso domar e castigar a fim de que funcionasse como uma máquina, posta ao nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, devia-nos escravatura. Muito recentemente soubemos que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e soubemos que, como nós, pode morrer assassinada. Já não se fala em submeter a natureza, agora até os seus verdugos dizem que há que protegê-la. Mas tanto num como noutro caso, natureza submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem (...)”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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