Dia das Mães: Pietás e dinossauros
Entre dinossauros e notícias de guerra, descubro que ser mãe é amar com alegria e lutar com luto, por Walid, por todos os filhos negados ao mundo
Falar nas pausas, escrever nas brechas, ser mãe nas folgas. Foi assim que fui descobrindo o ritmo possível, e impossível, da vida depois do Luiz. Um tempo que não se organiza em horas nem rende planilhas, mas que ainda assim entrega sentido. No meio da fala interrompida, da frase anotada no bloco de notas enquanto o bebê dorme, ou do pensamento que escapa durante a troca de fraldas, eu sigo sendo muitas, mas principalmente, sou mãe.
Ao contrário de boa parte das mulheres da minha geração, que, quando conseguem escrever e ser lidas, falam da maternidade como uma exaustão sem nome, eu não acho que o sistema não esmague. Ele esmaga. Mas eu não escrevo de lá. Eu escrevo daqui, do lugar de quem é muito feliz sendo mãe do Luiz. Muito mesmo. E talvez essa seja a maior heresia de todas, ser uma mulher que escreve, que milita, que denuncia, que sobrevive, e que ama a maternidade com gosto.
Não romantizo. Sei do peso. Da solidão. Da conta que nunca fecha entre afeto e estrutura. Mas é que o Luiz é um máximo. Ele é tão engraçado, tão leve, tão curioso, que eu seria amiga dele se eu fosse bebê. Eu seria o tipo de amiga que senta no chão pra brincar com os dinossauros de plástico, silicone, pelúcia, crochê… de todo tipo porque ele ama.
Mas ser mãe também me ensinou a reconhecer ausências. E há dores que chegam de longe, atravessam fronteiras, idiomas. Algumas a gente entende no corpo, mesmo sem tê-las vivido diretamente. Porque a maternidade tem esse poder: o de tornar inável toda injustiça cometida contra um filho, qualquer filho.
Na Palestina não existe mais o Dia das Mães. Não há data possível quando a ausência é permanente, quando o corpo do filho desaparecido não volta, quando o luto não tem onde se apoiar. E talvez não exista ironia mais violenta, a mãe fundadora da nossa cultura cristã, Maria, era uma menina palestina. Jovem, pobre, grávida sob ocupação militar. Assistiu seu filho ser executado pelo império. A imagem dela, imóvel, com o filho morto nos braços, virou escultura, reza, pintura, símbolo. Mas as mães palestinas de agora não viram altar, viram estatística.Luiza Gurjão perdeu o filho, Bergson, na Guerrilha do Araguaia. Bergson foi ao Araguaia com meus tios, que deram ao filho o nome do estudante brutalmente assassinado pelo Estado. Anos depois, meu destino se cruzou de novo com o de Luiza. Depois de uma perda gestacional, fui parar num psiquiatra. Na primeira consulta, ele falou de Luiza. Descreveu a dor dela, procurando pelos restos mortais do filho como uma Pietá sem o menino nos braços. Foi assim que entendi que certas ausências pesam de forma insustentável.
A ausência. Não o luto organizado das flores e dos discursos. A ausência viva, ardendo nas veias, arrancando o ar dos pulmões.
Pensei nela de novo quando li sobre Walid Khalid Abdalla Ahmad. Walid tinha 17 anos, brasileiro-palestino. Foi preso em Israel em setembro do ano ado, morreu na prisão de Megido em março. Um menino. Um menino que deveria estar escolhendo qual música mandar pra uma garota, que filme ver, qual rebeldia inventar contra o mundo velho. Mas estava preso, sem julgamento, sem defesa, sem mãe por perto. Morreu de fome, de infecção, de abandono. O Estado de Israel, esse mesmo que gosta de discursar sobre civilização, deixou um menino brasileiro morrer como se fosse bicho acorrentado no escuro.
O corpo dele continua sequestrado há mais de um mês. A mãe, Nida’h, sem poder enterrar o filho, sem poder vê-lo uma última vez. O Brasil pede, pede, e Israel cala. Enquanto isso, o Exército de Israel sequestrou também Salah Al-Din Yasser Hamad, primo de Walid, outro adolescente brasileiro-palestino. Salah está em Ofer, um presídio conhecido por quebrar corpos e almas. Vinte e uma acusações num tribunal militar, onde nem a própria inocência tem direito de entrar pela porta.
Quando um brasileiro morre em ataque do Hamas, como Ranani Glazer, a dor é reconhecida, publicada, lamentada em cadeia nacional, como tem que ser. Mãe é mãe em qualquer geografia. O Estado brasileiro mandou condolências, mobilizou diplomacia, acolheu a família, como tem que ser.
Mas quando o jovem morto é palestino, o silêncio vem fácil. O Itamaraty solta uma nota. O corpo apodrece na geladeira de um governo que brinca de genocídio. Os jornais chamam de “detenção”, como se cadeia para menino de 17 anos fosse rotina. Como se Nida’h não estivesse vivendo a mesma ausência insustentável que Tatiana, a mãe brasileira de Ranani. Como se a carne de Walid fosse menos carne. Como se a dor de Nida’h não fosse a mesma dor de Tatiana.
Quem já carregou um filho morto nos braços, quem já conheceu a violência da ausência que mata todo dia, sabe.Não existe mãe meio órfã, não existe ausência pela metade, não existe lágrima que tenha nacionalidade.O que existe é a decisão política de quem pode ser lembrado como vítima e quem deve ser descartado como estatística.
Walid foi descartado. Como Bergson, como tantos, como todos aqueles que a violência estatal, seja vestida de farda no Araguaia ou de uniforme em Megido, decide que não merecem futuro.
Com a diferença de que, décadas depois, Bergson teve sua luta reconhecida, seu nome lavado da lama dos assassinos. Sua mãe recebeu, ainda em vida, a justiça que o país lhe devia. Tardia, dolorosa, mas real. E é importante que isso seja dito, porque a memória de Bergson também é a memória de quem, como eu, conhece sua família e sabe que o nome dele foi reabilitado na história, um esforço de justiça, por mais que demorado.
Que Walid, Salah e todos os meninos palestinos não precisem esperar cinquenta anos para que sua humanidade seja finalmente enxergada.
Aqui, entre nós, que conhecemos o luto de verdade, a ausência não se domestica, nem a nossa memória. E nós, mães, não vamos esquecer.
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