O Brasil cresce, o México convence
Diferença de aprovação entre os governos brasileiro e mexicano ilustra que a materialidade das políticas sociais não se sustenta sem uma arquitetura simbólica
Nos últimos dias, tenho me questionado sobre o funcionamento desse mecanismo estranho que, mesmo diante de conquistas sociais e avanços políticos, falha em traduzir direitos concretos em reconhecimento popular — quando não os transforma em combustível para o próprio retrocesso. Como explicar que políticas que ampliam o à saúde, garantem emprego ou reduzem a fome sejam percebidas como "nada fez além da obrigação" por quem delas se beneficia? Parte da resposta está nessa teia invisível que junta economia, comunicação e poder: a materialidade das necessidades cotidianas (como o preço do gás ou do arroz) muitas vezes anula estatísticas abstratas, enquanto a máquina ideológica do capital — midiática, religiosa, e agora algorítmica — transforma frustrações individuais em ódio coletivo contra os próprios defensores das mudanças. Não se trata apenas de "falta de comunicação", mas de uma guerra de narrativas onde os algozes se apresentam como justiceiros, atribuindo crises estruturais a bodes expiatórios (governos, imigrantes, "comunistas") e vendendo a opressão como liberdade. É a dialética do desencanto: quando a esquerda conquista o Estado, mas perde as ruas, abre-se um vácuo onde até quem ganha pão a a culpar o padeiro.
Nesse sentido, é intrigante observar como a diferença de aprovação entre os governos brasileiro e mexicano — ambos liderados por figuras identificadas com a esquerda — ilustra, de modo visceral, que a materialidade das políticas sociais não se sustenta sem uma arquitetura simbólica capaz de legitimá-las perante a população. A aprovação do governo Lula caiu para 24%, segundo o Datafolha, em um cenário paradoxal: desemprego em queda, salário-mínimo valorizado e crescimento econômico acima das expectativas do mercado. No México, Claudia Sheinbaum chega aos primeiros cem dias com mais de 76% de aprovação, sustentando as políticas de seu antecessor, Andrés Manuel López Obrador (AMLO). Comparar os dois contextos exige cuidado, pois não se trata de opor "sucesso" a "fracasso", mas de entender como a história, estruturas e estratégias moldam essas realidades distintas.
No Brasil, a queda na popularidade de Lula não pode ser reduzida a uma única causa. A inflação de alimentos, que corroeu parte dos ganhos salariais, é um fator crucial: o preço do arroz subiu 22% em 2023, e o do feijão, 35%, segundo o Dieese. Para famílias que vivem com até dois salários-mínimos, esse impacto é imediato — e a percepção de que o governo "não resolve" o problema aumenta a frustração. No México, mesmo com inflação semelhante (4,2% em 2024), programas como a pensão universal para idosos e subsídios diretos à gasolina criaram uma espécie de amortecedor social. A diferença não está na competência gerencial, mas na capacidade de vincular políticas públicas a uma narrativa de proteção coletiva.
Parece ser tentador atribuir o sucesso de AMLO e Sheinbaum às "mañaneras" (coletiva de imprensa transmitida ao vivo todos os dias, às 7h da manhã). O México tem uma tradição de líderes de esquerda enraizada na Revolução de 1910 e em figuras como Lázaro Cárdenas, que nacionalizou o petróleo nos anos 1930. AMLO e Sheinbaum resgatam esse imaginário, associando-se a símbolos de soberania nacional e justiça social. No Brasil, o PT, embora forjado nos movimentos operários e sociais, surgiu em um contexto diferente: a redemocratização, marcada por pactos frágeis com elites e uma mídia que nunca deixou de tratá-lo como "usurpador" do poder. A desconfiança histórica em relação à esquerda brasileira — alimentada pelo lawfare, pelo mensalão e pela campanha de 2018 — cria um piso de rejeição que Lula não consegue romper.
A comparação entre Brasil e México em 2024 revela nuances importantes. O México, sob Claudia Sheinbaum, manteve um modesto crescimento econômico de 1,3% em 2024. Já o Brasil, com crescimento de 3,5% (acima da média global), beneficia-se do boom do agronegócio (exportações de soja batendo recordes) e da retomada de obras de infraestrutura, como o programa Novo PAC. Apesar disso, a inflação no Brasil (4,1%) pressiona mais o bolso dos pobres (alimentos subiram 6,8%) que no México (4,5%), onde subsídios federais à gasolina e ao milho estabilizaram custos básicos.
No campo social, o México ampliou programas como Jovens Construindo o Futuro (agora com 2,5 milhões de beneficiários), centrado na formação para o trabalho e na inclusão efetiva no mercado de trabalho. O Brasil, por sua vez, expandiu o Bolsa Família para 20,5 milhões de famílias, mas enfrenta críticas pela lentidão no Minha Casa Minha Vida. A diferença de aprovação reflete menos a "crise" e mais a capacidade de traduzir números em esperança: Sheinbaum governa com maioria no Congresso, enquanto Lula, com base frágil, pressionado por uma oposição que usa até o aumento do salário-mínimo (R$ 1.518) como "culpa pela inflação".
Isso não significa que a comunicação seja irrelevante. As "mañaneras" funcionam no México porque são parte de um projeto maior: AMLO ou décadas construindo uma imagem de líder anticorrupção, e Sheinbaum mantém esse capital político. No Brasil, a esquerda enfrenta uma mídia tradicional que cria crises (o caso da suposta intenção de taxar transações via Pix) e minimiza conquistas (como a redução na fila do INSS). Ainda assim, reduzir o problema à "falta de afeto político" seria simplista. A queda na aprovação de Lula entre seus eleitores tradicionais reflete falhas concretas: a adoção do Novo Arcabouço Fiscal, como uma forma de austeridade fiscal disfarçada, a dificuldade em lidar com o tema da segurança pública, a lentidão na retomada de políticas para mulheres e a ausência de uma reforma tributária progressiva.
A ascensão de Sheinbaum tampouco é um conto de fadas. O México enfrenta níveis alarmantes de violência, corrupção localizada e pressões dos EUA sobre migração e energia. Sua popularidade, porém, se sustenta porque o governo articula respostas simbólicas a problemas reais: a militarização da Guarda Nacional (criticada por defensores de direitos humanos) é vendida como "guerra ao narcotráfico", enquanto obras como o projeto ferroviário Tren Maya são apresentadas como "redenção do sul pobre". No Brasil, Lula hesita em adotar gestos semelhantes. Quando anuncia o PAC, não consegue vinculá-lo a uma ideia de "reconstrução nacional"; quando enfrenta o agronegócio, recua para evitar conflitos.
A diferença crucial, a meu ver, está na capacidade de transformar políticas em mitos políticos. AMLO e Sheinbaum entendem que governar é também produzir significados: um hospital inaugurado em Chiapas não é apenas infraestrutura, mas um símbolo de "dívida histórica paga". Lula também cita isso em seus discursos quando fala em dívida histórica com os povos indígenas ou com quilombolas e os pobres. O “nunca na história desse país”, muitas vezes é pressionado pelo pragmatismo, que trata as políticas como ajustes técnicos — o aumento do salário-mínimo vira notícia de economia, não bandeira de orgulho classista.
Isso não ocorre por acaso. O México tem uma esquerda que, mesmo com contradições, manteve vínculos orgânicos com movimentos sociais. O governo Sheinbaum inclui ex-ativistas indígenas e ambientalistas em cargos-chave. O governo Lula tem ministra indígena, negra e ambientalista de renome internacional, mas o PT e seus aliados, após anos no poder, burocratizaram-se. Quando o governo Lula prioriza alianças com o centrão em detrimento de bases históricas (como sindicatos e MST), perde a capacidade de mobilizar suas bases e espaços onde o protagonismo político se constrói.
A ascensão da extrema direita no Brasil, é claro, não se explica apenas por erros da esquerda. O bolsonarismo é filho de uma crise orgânica: a destruição do Estado pela tentativa do neoliberalismo se firmar como projeto hegemônico, a judicialização da política e o ressentimento de classes médias empobrecidas. Sheinbaum, por outro lado, herda um país onde a direita tradicional (PRI e PAN) está desmoralizada, sem líderes capazes de canalizar o descontentamento. A diferença é que, no México, a esquerda ocupou o vácuo deixado pela direita neoliberal; no Brasil, convive com seu fantasma.
Há lições aqui, mas não receitas. A esquerda mexicana mostra que é possível governar com altos índices de aprovação mesmo em contextos adversos — desde que se combine gestão eficiente, comunicação afiada e projetos que ressoam com identidades históricas. No Brasil, Lula enfrenta desafios mais cabeludos: reconstruir um Estado desmontado, enfrentar uma direita radicalizada e reacender a chama de um projeto que, para muitos, parece esvaziado.
Isso não significa que a situação seja irreversível. A queda na aprovação de Lula é grave, mas não terminal. É preciso evitar duas armadilhas: o economicismo (acreditar que indicadores materiais garantem apoio) e o derrotismo (culpar as "Big Techs" por todas as derrotas). A vitória contra Bolsonaro em 2022 provou que a esquerda brasileira ainda tem fôlego — desde que reconheça seus erros e renove suas estratégias. Para isso, precisa olhar além das redes sociais e das pesquisas de opinião, reconectando-se com as ruas, os sindicatos e as periferias. Afinal, como dizia uma faixa na última Marcha das Margaridas: "Nenhum direito a menos começa com nenhuma praça vazia".
O caminho é retomar o que sempre definiu a esquerda: estar presente onde o povo sofre, construir poder desde baixo e lembrar que, nas palavras de Gramsci, "o velho está morrendo, e o novo não pode nascer".
Nesse interregno, monstros surgem — mas também nascem as revoluções.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: