O holocausto palestino televisionado: um conto de terror real e sem fim
Utilizar “holocausto palestino" não se trata de apropriação ou relativização, mas de nomear um processo de violência e destruição sistemática
Desde o dia 7 de outubro de 2023, o mundo assiste ao espetáculo mórbido do sofrimento palestino, transmitido ao vivo, sem cortes, como se fosse apenas mais um episódio disponível de uma série sobre guerra. Sob os olhos da comunidade internacional, Israel conduz uma política de cerco, destruição e deslocamento forçado da população palestina, impondo uma lógica de punição coletiva que desafia qualquer noção de humanidade.
Para compreender essa escalada brutal, é preciso voltar de forma breve no tempo. Em 1947, a ONU aprovou a partilha da Palestina histórica, estabelecendo um Estado judeu e outro árabe, com Jerusalém sob istração internacional. Israel declarou sua independência em 1948, e, já nesse momento, a guerra e o deslocamento de centenas de milhares de palestinos marcaram o início do que ficou conhecido como a Nakba, a catástrofe palestina. Desde então, o mapa tem mudado, sempre em favor de Israel: sucessivas guerras, ocupações, assentamentos ilegais e o progressivo encolhimento do território destinado aos palestinos.
Diante dessa trajetória de destruição sistemática e prolongada, é inevitável que muitos recorram a palavras fortes para tentar dar nome ao horror. Uma delas — talvez a mais controversa — é “holocausto”. Por isso, vale abrir um parêntese sobre o uso do termo e seu peso histórico. E me desculpem aqueles que não gostam de explicações, mas me parece fundamental desmistificar seu significado. Em sua origem, o termo vem do grego antigo holókaustos (ὁλόκαυστος), junção de hólos (“todo, inteiro”) e kaustós (“queimado”), designando literalmente algo “completamente queimado”. Inicialmente, era um termo religioso usado na Grécia Antiga para descrever um sacrifício no qual a vítima era totalmente consumida pelo fogo, como oferenda integral aos deuses.
Posteriormente, na tradição judaica do Antigo Testamento, “holocausto” ou a nomear os sacrifícios em que o animal era queimado integralmente no altar, sem que nada fosse consumido pelos humanos. Só muito mais tarde, o termo ganhou o sentido de destruição total — primeiro por fogo e, em seguida, por extensão, qualquer aniquilação sistemática de vidas humanas, como no caso do extermínio dos judeus pelo regime nazista. Portanto, ao utilizar “holocausto palestino”, não se trata de apropriação ou relativização, mas de nomear um processo de violência e destruição sistemática que dialoga, lamentavelmente, com a trajetória histórica do termo.
Casa-Palestina Tomada - É como se estivéssemos diante de uma versão real do conto “Casa Tomada”, de Julio Cortázar. No conto, um casal de irmãos vê, pouco a pouco, sua casa ser invadida por uma presença inexplicável, forçando-os a recuar, abrir mão de seus espaços, até serem completamente expulsos. O processo de expropriação não é mais sutil, ele é constante e, no final, inevitável. Assim ocorre há décadas na Palestina: a casa-palestina, de geração em geração, vai sendo tomada — às vezes por meio de bombas e tanques, outras por decisões burocráticas, construção de muros, restrições de circulação e colonatos. O povo palestino, como os irmãos do conto, vai recuando, perdendo território, dignidade, direitos, até quase não restar nada além do exílio e da memória.
Nesse contexto, Benjamin Netanyahu atua como um senhor feudal, decidindo, ao seu bel-prazer, quando deixa entrar comida e ajuda humanitária, quando fecha as fronteiras, quando desaloja ou bombardeia populações inteiras. O argumento do “resgate dos reféns” serve apenas de cortina de fumaça para um objetivo maior: a aniquilação sistemática de um povo. Não se trata de autodefesa, nem de uma guerra convencional — mas de um projeto de eliminação, televisionado e, infelizmente tolerado.
A participação israelense no Eurovision deste ano foi, para muitos, a imagem perfeita da dissociação moral. A cantora Yuval Raphael subiu ao palco representando Israel com a canção “New Day Will Rise”, durante o concurso realizado em Basileia, na Suíça. Sua escolha foi envolta em um drama pessoal amplamente explorado: Yuval Raphael sobreviveu ao ataque do Hamas ao festival Nova, em 2023, ando horas fingindo-se de morta para escapar do massacre. Essa história real de horror e resiliência foi amplificada pela mídia internacional para criar uma narrativa de superação e esperança — mas, paradoxalmente, apenas em benefício da imagem do Estado de Israel. Enquanto o trauma individual da cantora é exaltado, o sofrimento coletivo do povo palestino segue invisibilizado, reduzido a estatísticas ou a ruídos de fundo. Quando a resiliência é apropriada por apenas um lado, torna-se instrumento de legitimação da violência e da negação da dor alheia, reforçando a hipocrisia e o duplo padrão moral do Ocidente e dos meios de comunicação.
Eu mesma assisti estupefata a candidata de Israel ganhar o segundo lugar, devido ao acréscimo do voto popular, num concurso que tinha candidatos visivelmente melhores, expôs um cinismo coletivo difícil de disfarçar. Por sorte o austríaco JJ (nome artístico de Johannes Pietsch) era imbatível, não havia espaço para dúvida. O constrangimento das apresentadoras diante do resultado era genuíno. A guerra, o sofrimento e a destruição parecem não contaminar o glamour dos palcos europeus — desde que as vítimas estejam longe o bastante das câmeras.
Quais critérios definem quem deve ser banido? - Saindo dos palcos e voltando ao mundo real, o que mais chama atenção é a moral dupla escancarada pela política internacional. Basta olhar para a situação da Rússia, banida de praticamente todos os grandes eventos esportivos, culturais e artísticos do mundo em resposta à sua guerra contra a Ucrânia. Não há Eurovision, Olimpíadas, ou qualquer premiação internacional para a Rússia. O país virou pária global, com severas sanções e exclusão. Mas quando se trata de Israel — apesar das denúncias de crimes de guerra, do sofrimento humano em escala massiva, da violação aberta do direito internacional —, a reação global é marcada pela conivência, ou, no máximo, por declarações ambíguas. Mesmo com um pedido de prisão contra Netanyahu por crimes de guerra, Israel segue impune. O que diferencia a guerra de Israel da guerra da Rússia? Por que o Ocidente é capaz de banir um país e ser tão conivente com o outro? O duplo padrão moral é gritante, injustificável e profundamente imoral.
É preciso dizer, sem rodeios: criticar o Estado de Israel não é antissemitismo. Não se trata de religião, mas de política, poder e violação sistemática de direitos humanos. Usar o ado trágico dos judeus como escudo para práticas hoje inaceitáveis é desrespeitoso inclusive com a memória das vítimas do Holocausto nazista. O que se vê em Gaza é um crime contra a humanidade: um povo sitiado, faminto, humilhado, desumanizado, bombardeado e expulso de suas casas. O que falta para o mundo reconhecer o óbvio?
A inércia do Ocidente e das grandes instituições internacionais diante desse processo é, talvez, a parte mais vergonhosa de tudo. A conivência internacional, as notas ambíguas, a falsa neutralidade, a busca por equilíbrio entre “dois lados” profundamente desiguais, configuram cumplicidade, não diplomacia. Não existe simetria possível entre um exército que opera com armamento de ponta e uma população encurralada e desarmada.
O sofrimento dos reféns israelenses é real, mas não pode justificar o massacre de milhares de civis palestinos. Não há moral, ética ou direito que legitime o que está sendo feito. E a omissão mundial, ao assistir ivamente ao holocausto palestino, só reforça a barbárie.
No fundo, nada do que escrevo aqui é novidade. Nada do que foi dito, analisado ou denunciado neste texto é inédito. Todos os dados estão disponíveis, todas as imagens, relatos e vídeos circulam nas redes sociais, todos os argumentos já foram apresentados. Mas o horror continua, impune, televisionado, cotidiano. Só há uma saída: que mais pessoas se permitam questionar, se indignar, cobrar e exigir respostas. Quanto mais vozes se levantarem para denunciar, mais difícil será para o mundo fingir que nada está acontecendo. Não podemos nos acostumar e normalizar o que acontece na Faixa de Gaza. A indiferença é, ela mesma, uma escolha e, no caso palestino, um crime. E enquanto você lê este texto tem alguém morrendo na Palestina.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: