O homem que deixou a Caatinga respirar
Um conto em homenagem ao Dia Nacional da Caatinga, bioma lindo e ameaçado que ocupa cerca de 10% do país e está presente nos nove estados do Nordeste
Lá nas entradas da Trincheira, zona rural de Cabaceiras, no Cariri da Paraíba, quase perto do rio Taperoá, onde o sol funde as pedras se deixar, e o vento espalha poeira como quem espalha lembrança. Pronto, é lá que vive Cícero. Filho do vaqueiro Totinha com a agricultora Tereza, neto de dona Luzia rezadeira, ele nasceu entre espinhos de mandacaru e a cantoria dos pássaros às cinco da manhã. Desde menino, aprendeu a respeitar o que o sertão oferecia — e, mais importante, o que ele não dava.
Cícero via escassez, mas também via ensinamento. A estiagem lhe mostra a cada ano que paciência é mais valiosa que água em pote de barro. Que quando o chão racha, é só o tempo da raiz se ajeitar mais fundo. E que a Caatinga era viva — viva de um jeito que só quem escuta o silêncio do mato entende. Pena que segue tão mal tratada.
Enquanto os mais jovens partiam para Campina Grande ou João Pessoa em busca de futuro, ele preferiu ficar por ali mesmo. Decidiu que iria cuidar da terra como quem cuida da mãe doente: com zelo, atenção e fé. Cícero nunca teve estudo de papel timbrado, mas lia a Caatinga com os olhos de quem lê um livro sagrado.
Foi num dia de fevereiro, desses que arde sem piedade, que Cícero notou o primeiro sinal: o juazeiro que ele plantara cinco anos antes começou a sombrear o curral. Era um gesto pequeno, mas ali havia uma promessa — de sombra, de semente, de permanência.
Começou a cercar um pedaço de chão, afastar o gado, controlar o uso da água e deixar o mato se recompor. O povo da vila zombava: “Ciço tá criando mato pra ver arinho”. Ele sorria. Sabia que ali, no meio da jurema-preta, xique-xique, pau-ferro havia um pacto antigo, que vem desde os indígenas, entre o sertanejo e a terra.
O tempo foi ando e o trabalho de reflorestamento feito por Cícero virou conversa de rádio local, depois reportagem na TV. O “sertanejo que queria salvar a Caatinga” virou manchete. Mas ele pouco ligava para fama. O que lhe importava era o retorno das abelhas jandaíras, era o barulho dos bichos à noite, era ver as plantas acordando com a primeira chuva, como se soubessem que o tempo certo sempre volta.
Um pesquisador da universidade chegou certa vez, instalou uma torre esquisita no meio da reserva de Cícero. Mediam o tal do carbono. Dias depois, o doutor espantado dizia que aquele pedaço de chão sequestrava CO₂ como poucas florestas no mundo. Cícero coçou o queixo, olhou o chão e disse: — Pois é… a Caatinga só precisa que deixem ela respirar.
Veio gente da Sudene, de ONGs, de Brasília. Queriam aprender com ele. Cícero ensinava pouco com palavras e muito com o gesto: andar devagar, respeitar o tempo da terra, ouvir o sabiá antes de responder qualquer coisa. E, sobretudo, lembrar que a Caatinga não é um deserto, mas uma biblioteca de resistência. Tem gente da vila ajudando, tem escola levando menino pra conhecer o “mato que guarda o ar do mundo”. Cícero, de camisa de algodão e chapéu de palha, continua andando pelo meio do mato, ora colhendo sementes, ora rezando baixinho. Como quem conversa com a avó Luzia ou com o próprio tempo.
Se perguntarem a ele o que espera do futuro, talvez diga só: — Que a Caatinga siga viva… e que a gente siga sendo digno dela. Porque para Cícero, e para tantos como ele, a Caatinga não é só bioma. É espelho. É casa. É coração batendo no ritmo seco e profundo do sertão.
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