O meu 11 de setembro
No dia 11 de setembro acordei com o mesmo ruído dos voos rasantes dos aviões
Eu estava numa reunião, em julho de 1970, no Cebrap, em São Paulo, quando chegou o Carlos Lessa, economista, vindo do Chile, e nos disse – em tom de comunicado – que o Chile ia eleger um presidente socialista.
Parecia uma coisa do outro mundo, pelo clima no Brasil e mesmo no conjunto da América Latina, em que o único governo que divergia do consenso conservador na região – além de Cuba, claro – era o do militar peruano nacionalista Velasco Alvarado.
Quem diria que poucos meses depois, em novembro de 1970, eu chegaria clandestinamente ao Chile – já no governo socialista de Salvador Allende –, depois de viajar de ônibus desde Santos até Porto Alegre, trocando de ônibus ao longo de todo o caminho. Dali até Montevidéu, Buenos Aires e Buenos Aires, de onde, de avião, fui para Santiago.
A primeira sensação já era deslumbrante, pelo caráter de massas de todas as manifestações – mesmo as da direita.
Logo ei a viver bem no centro – em Huérfanos, entre Bandera e Morandé, a duas quadras do Palácio da Moneda –, de onde vivi todo o governo do Allende, incluído o golpe de 11 de setembro. Dali pude ver, várias vezes, o Allende e seus auxiliares caminhando a pé pelo centro de Santiago.
Desde a vitória surpreendente de Allende, na sua terceira tentativa de se eleger, nos setores mais radicalizados da esquerda – especialmente no Mir, dirigido por Miguel Enríquez –, a ideia era de que o caminho da via pacífica ao socialismo estava condenado ao fracasso. Que inevitavelmente seria cortado por uma reação violenta da direita e por um golpe.
Quando conversávamos com Fidel, em Havana ou na sua viagem ao Chile, ele nos recomendava: Não apressem a Salvador. Já chegará o momento de vocês.
Como dirigente comprometido diretamente com as experiências da via armada – como a própria via vitoriosa da Revolução Cubana, que era a referência para todos nós –, Fidel se identificava com as propostas do Mir, só nos pedia para um pouco de paciência para o momento do Allende, que ele também achava que ia desembocar em um golpe militar.
Uma das sensações de que eu mais me recordo era a do gás lacrimogêneo, que invadia todas as ruas do centro, não importava quem fazia a manifestação.
Foi o clima até o 11 de setembro de 1973. O acontecimento que, mais diretamente, foi introduzido pela tentativa de golpe de fim de junho, chamado de “tancazo”, de 29 de junho de 1973. Prenunciava, da forma mais próxima possível, o que aconteceria em 11 de setembro.
Acordei com o mesmo som com que seria acordado em 11 de setembro: ruído forte de aviões sobrevoando o centro de Santiago. Ao fim da tarde, o movimento, em junho, havia sido contornado, pela ação do general Prats, ministro militar fiel a Allende, que conseguiu convencer os líderes golpistas a se desmobilizarem.
Porém, ao contrário do que todos os que fomos à concentração em frente à Moneda esperávamos, Allende fez um discurso de pacificação, sem punições, nem sequer a demissão dos ministros militares, coniventes abertamente com aquela primeira tentativa de golpe. Era um prenúncio grave. Saímos todos frustrados e esperando pelo pior.
No dia 11 de setembro acordei com o mesmo ruído dos voos rasantes dos aviões. Chegando ao Palácio da Moneda, deu para ver o Allende sozinho, na janela de onde ele discursava, com o capacete que os mineiros tinham dado e o fuzil soviético AK que o Fidel tinha lhe dado, disparando solitariamente.
Os militares propam ao Allende que ele se entregasse, seria levado com vida a um país estrangeiro. Allende reagiu indignado. Fez sair todas as mulheres, ficou apenas com uns 8 auxiliares, mais a Payita, sua companheira – que relatou como ocorreram as coisas a partir dali, relato que eu ouvi dela em Havana.
Conforme as tropas foram cercando o Palácio, se viu as pessoas que o Allende tinha ordenado que saíssem, saírem pela estreita porta da rua Morandé, de onde eu tinha visto o Allende sair várias vezes, circulando com assessores seus, pelo centro de Santiago.
O Mir propôs a Allende que o tiraria do Palácio da Moneda e o levaria para um bairro popular, onde ele se reafirmaria como o governo legal do Chile e receberia a solidariedade internacional. Allende respondeu que sua tarefa era, como ele havia prometido, não sair da Moneda no fim do seu mandato ou morto. Que resistiria até o fim. Que nos tocaria abrir as grandes alamedas da democracia no futuro do Chile.
Eu, que tinha um encontro com Victor Toro, o dirigente popular do MIR, em um paradeiro da avenida Vicuña Mackenna, não pude chegar lá, porque o o a essa avenida estava fechado militarmente.
Me dirigi então ao Ceso (Centro de Estudos Socioeconômicos), da Faculdade de Economia da Universidade do Chile, onde eu trabalhava, perto da Estação Central. Lá estavam, entre outros, os brasileiros que trabalhavam ali: Ruy Mauro Marini, Marco Aurélio Garcia, Jorge Matoso e outros, entre eles a Marta Harnecker.
Ficávamos ali escondidos, fingindo que não havia ninguém, com as luzes apagadas, diante das ações das forças golpistas. Ficamos ali até que se declarou a suspensão do toque de recolher que estava vigente, no final da tarde, por um tempo de algumas horas.
Dali fomos, na citroneta do Marco Aurélio, ele, o Jorge Matoso, eu e minha companheira, Maria Regina Marcondes Pinto. Quando estávamos perto do Estádio Nacional, fomos parados por uma patrulha policial, que nos pediu os documentos. Brasileiros, que haviam chegado ao Chile em 1970, fomos presos e encaminhados para a delegacia de Ñuñoa.
Lá ficamos em uma cela com haitianos, que haviam sido denunciados por vizinhos democrata-cristãos como se fossem cubanos (que soubemos depois que foram mortos). Quando já se aproximava o momento do outro toque de recolher, o delegado nos perguntou se conseguiríamos chegar às nossas casas. Dissemos que sim e pudemos sair da delegacia na citroneta do Marco Aurélio.
Depois de uns dias, como as embaixadas da Argentina e do México estavam lotadas, fomos levados para a embaixada do Panamá, um apartamento no térreo de um prédio no centro de Santiago. Rapidamente ficou lotado o local, não dava mais nem para que as pessoas ficassem sentadas no chão.
Theotonio e Vania ofereceram a casa que haviam recém-comprado para que se tornasse a embaixada do Panamá. Eles não haviam ainda nem se instalado na casa. Só entraram nela já como exilados, como todos nós. Casa que, depois, se tornou local da Dina, na rua José Domingo Cañas. Theotonio e Vania só receberam de volta a casa no fim da ditadura. Casa que atualmente se tornou um Museu da Resistência.
Ruy Mauro e eu fomos os primeiros a sair, porque tínhamos responsabilidades do Mir a cumprir no exterior. Ele, como responsável na Europa, instalando-se na Alemanha. Eu, na Argentina, como responsável pelo trabalho na América Latina. Como o Mir havia decretado que “o Mir não se asila”, se diferenciando dos outros setores da esquerda, os estrangeiros se tornaram responsáveis pelo trabalho externo do Mir.
Mais tarde eu fui para Roma, onde havia o escritório de Chile Democrático, no centro da cidade, como principal representação externa da resistência chilena. Ali eu conheci os companheiros de Lotta Continua, que haviam arrecadado uma grande quantidade de recursos para a resistência chilena, com a campanha “Armas para o Mir”.
Olhado desde agora, aquele 11 de setembro parecia fatal. O desenlace de uma história anunciada, prevista, prognosticada, quase fatal. Uma tragédia, que se daria de forma muito aproximada com o que o Mir previa.
Miguel Enríquez, que ou a ser o principal líder da resistência, considerava que, depois do 11 de setembro, se teria que tratar de derrubar o regime de ditadura militar em dois anos, senão ele se estenderia por pelo menos dez anos.
Daí o esforço tremendo que o Mir realizou para tentar a derrubada da ditadura de Pinochet nos seus primeiros anos. Esforço heroico que – correto ou não –, levou ao sacrifício de grande parte dos seus principais quadros, inclusive do próprio Miguel Enríquez.
Talvez se pudesse ter tido uma posição de maior apoio crítico ao governo de Allende, ao invés de uma crítica tão dura, como a que o Mir teve. Mas nada disso teria impedido o golpe de 11 de setembro de 1973, que ficou como uma data dramática e trágica para a esquerda chilena e para a esquerda de todo o mundo, pela importância daquela única experiência, até aquele momento, de tentativa de via pacífica ao socialismo.
Hoje, com o Chile tendo reconquistado a democracia – com as grandes alamedas reabertas, como prognosticava Allende –, em que nos reencontramos na Alameda com tantos companheiros da clandestinidade, o Chile encara o desafio do que fazer com a democracia realmente existente, conquistada com tanto suor e lágrimas, a partir daquele fatal 11 de setembro de 1973.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: