Para ler a conjuntura internacional
Olhando para o futuro, o que se consegue ver é um mundo atravessando um período muito longo de flutuação e turbulência, instabilidade e imprevisibilidade
* Este artigo foi apresentado na abertura do Ciclo de Estudos Estratégicos "Geopolítica do Século 21", promovido pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP).
Para além dos acontecimentos, existe uma história inconsciente ou mais ou menos consciente – que escapa à lucidez dos atores, dos responsáveis ou das vítimas: elas fazem a história, mas a história as arrasta.
Braudel, F. História e ciências sociais. Ed. Presença, 1972, p. 130
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O MÉTODO
Em 2025, completam-se 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e da criação das Nações Unidas. O mundo deverá enfrentar uma agenda pesada de conflitos e incertezas: na Ucrânia, em Gaza e em todo o Oriente Médio; no Mar do Sul da China; na África Negra e na própria América Latina, onde se antecipa um confronto imediato – após a posse do presidente dos EUA, Donald Trump – entre seu novo Secretário de Estado, o senador Marco Rubio, de origem cubana, e os presidentes de Cuba e da Venezuela.
Assim, para fazer uma boa leitura dessa conjuntura internacional, é indispensável um certo distanciamento do dia a dia, que nos permita diminuir o ruído ensurdecedor dos acontecimentos imediatos, colocando-os numa perspectiva de mais “longo prazo” e com uma visão teórica do tempo, do espaço e das grandes transformações históricas do sistema internacional. Sem essa visão teórica, é impossível identificar os fatos e conflitos imediatos mais relevantes, em cada conjuntura, aqueles que “escondem” e “desvelam”, a um só tempo, o recorte das “grandes crises” e o sentido das grandes “tendências” do sistema internacional. Ainda mais num momento como o que estamos vivendo, em que esse sistema está atravessando uma mutação profunda, quase geológica, muito rápida e universal.
A HISTÓRIA E A TEORIA
Desde o início de sua formação na Europa, em torno do século XIII, o “sistema interestatal” expandiu-se de forma contínua – como se fosse um “universo em expansão” – até se transformar num sistema global. Essa expansão, entretanto, não se deu de forma regular e pacífica. Pelo contrário, foi uma criação violenta do poder conquistador de alguns Estados territoriais europeus, que definiram suas “soberanias internas” dentro da Europa quase ao mesmo tempo que se expandiam para fora do Velho Continente, transformando-se, a um só tempo, em Estados nacionais e impérios marítimos ou coloniais. Até o fim do século XVIII, esse “sistema interestatal” era formado apenas pelos Estados europeus e seus impérios. No século XIX, agregaram-se os Estados nacionais que se formaram na América, e na segunda metade do século XX, os Estados nacionais que nasceram da desmontagem dos impérios europeus na África e na Ásia.
Duas características distinguem a originalidade e explicam a força vitoriosa desses Estados europeus: primeiro, a forma como seu poder político delimitou e se articulou com suas economias nacionais, criando uma “máquina de acumulação” de poder e riqueza, os “Estados-economias nacionais”; e segundo, a maneira como esses “Estados-economias nacionais” nasceram, em conjunto, e numa situação de permanente competição, guerra e expansão.
Através da história desse sistema interestatal, é possível identificar quatro grandes “explosões expansivas” que alargaram suas fronteiras e alteraram a ordenação hierárquica, primeiro da Europa e depois do “resto do mundo”. Foram “momentos” através da história de longo prazo do sistema em que se observa uma espécie de “condensação de energia”, seguida de uma grande “inflação sistêmica”, para manter a analogia com a teoria cosmológica. No momento de “condensação”, aumenta a “pressão competitiva” entre as unidades do sistema e, logo em seguida, nos momentos “inflacionários”, o sistema como um todo se expande numa velocidade crescente, multiplicando seu próprio poder e o de suas unidades mais competitivas.
A primeira “grande explosão expansiva” se deu no “longo século XIII” (1100-1300) e coincide com a origem do próprio sistema; a segunda se deu no “longo século XVI” (1450-1650) e coincide com a expansão do sistema para fora da Europa; a terceira ocorreu no “longo século XIX” (1720-1920), período que Eric Hobsbawm chamou de “era do imperialismo”. E agora de novo, desde as décadas de 70 e 80 do século XX, o mundo vem assistindo a uma quarta “grande explosão expansiva” que começou com o fim dos impérios coloniais europeus e a multiplicação do número de Estados nacionais do sistema mundial, que eram cerca de 60 em 1960, e hoje são 195 com assento nas Nações Unidas. Essa “condensação energética” cresceu no período da unipolaridade norte-americana, depois do fim da Guerra Fria, e alcançou dimensões cósmicas com a entrada da China no sistema de Westfália. A sensação de “desordem cósmica” que vivemos hoje no mundo faz parte desta quarta “explosão expansiva”, cujos efeitos devem se estender através do século XXI.
A CONJUNTURA I: OS GRANDES CONFLITOS
Neste momento, o relógio do sistema internacional parece se acelerar, multiplicando o número de fatos e acontecimentos inesperados que põem abaixo as convicções estabelecidas, disseminando um sentimento de descontrole e indeterminação. A cada dia, a cada semana, todos os meses surgem novidades que são em geral apenas a ponta visível de transformações mais profundas que precisam ser decifradas. No meio do nevoeiro, há que localizar aqueles conflitos que se transformam nos grandes catalisadores da conjuntura, servindo como referência para a maioria dos atores do sistema mundial. É o caso destes quatro grandes conflitos que operam como “organizadores” de um mundo extremamente fragmentado.
- A Guerra da Ucrânia
O conflito da Ucrânia começou com o golpe de Estado em fevereiro de 2014, que derrubou o presidente eleito Victor Yanukovich, com o apoio dos Estados Unidos (EUA) e da União Europeia, e culminou com a invasão russa do território ucraniano em fevereiro de 2022. Colocou, assim, frente a frente, de um lado, o plano de expansão da presença militar da OTAN na direção da Europa do Leste, com o objetivo de prevenir e conter qualquer tentativa russa de “revanche” com relação à sua derrota de 1991. E do outro, a estratégia russa de recomposição de seu Estado, economia e “zona de influência”, e de defesa do que restou do seu território conquistado pelo Império Russo dos Romanoff.
Dois anos e meio após o início da guerra, é possível identificar algumas consequências econômicas e geopolíticas desse conflito que já são irreversíveis, e que podem ser consideradas as portas de entrada da “nova ordem mundial” que será construída nesta primeira metade do século XXI.
Em primeiro lugar, a invasão russa do território ucraniano e sua sustentação há quase três anos, representam por si só o surgimento, dentro do sistema mundial, de um poder militar com capacidade de veto das decisões tomadas pelas “potências ocidentais”.
Em segundo, o afastamento econômico da Rússia com relação à União Europeia e aos países do G7 já se consolidou e representa um o irreversível da economia russa na direção do continente asiático, firmando o bloco eurasiano como epicentro econômico do sistema capitalista mundial.
Em terceiro lugar, apesar de sua retórica agressiva, o que tem se visto até aqui é que os EUA têm se comportado neste conflito de forma cada vez mais reativa e defensiva, cedendo à Rússia a iniciativa estratégica no campo militar na Europa.
E por último, a superioridade tecnológica sobre os europeus, demonstrada pelos russos no campo de batalha, junto com a retração norte-americana, deverá provocar uma corrida às armas e a militarização crescente de toda a economia europeia, incentivando uma corrida armamentista entre seus próprios Estados-membros.
- A Guerra de Gaza
Não há como entender a importância geopolítica global desse segundo conflito que capitaliza a conjuntura atual, e que já dura de fato 76 anos, sem recorrer à história da formação de Israel, que é um “mini-Estado” com uma população menor do que a da cidade de São Paulo, e sem nenhuma importância geoeconômica, uma espécie de “anão atômico” criado pelas potências anglo-saxônicas.
Foram os ingleses que promoveram e incentivaram a grande onda migratória dos judeus europeus para a Palestina entre 1922 e 1935. E foi essa onda migratória que provocou a primeira grande revolta palestina, derrotada pela Força Aérea inglesa, entre 1936 e 1939. Ali nasceu o movimento de resistência palestino, que se manteve vivo depois que os ingleses se desfizeram do seu “mandato internacional” em 1947, e aram a articular o projeto de criação do Estado Judeu, através de uma decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas. Decisão tomada no dia 29 de novembro de 1947 sob forte pressão dos EUA, por apenas 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. A ONU havia sido recém-criada e seria muito difícil que pudesse tomar uma decisão desta importância e gravidade se não fosse pela intervenção, quase imperativa, dos EUA, empoderados pelo “sucesso” recente de seu ataque nuclear contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
Da mesma forma, Israel não teria conseguido vencer sua primeira guerra contra Egito, Síria, Líbano e Jordânia, em 1948, tampouco teria conseguido vencer suas sucessivas guerras contra os árabes, em 1967 e 1973, sem o apoio financeiro e militar de EUA e Grã-Bretanha. E é esta “relação genética” que explica o apoio incondicional das potências anglo-saxônicas ao massacre palestino da Faixa de Gaza, que começou como uma resposta israelense ao ataque dos Hamas ao território de Israel, desfechado no dia 8 de outubro de 2023, e que já se prolonga há mais de um ano, estendendo-se à Cisjordânia, ao Líbano, e mais recentemente, à Síria.
Hoje, não existe a menor perspectiva de que o governo de Benjamin Netanyahu aceite qualquer tipo de negociação que implique a retirada de seus soldados de Gaza ou dos colonos judeus da Cisjordânia. Muito menos que aceite a criação de um Estado Palestino. E tampouco existe a possibilidade de que EUA e Grã-Bretanha retirem seu apoio a Israel, por mais que isso possa estar erodindo a ideia da excepcionalidade ética dos povos anglo-saxões, porque o que está em jogo, em última instância, é seu próprio “poder militar global”. Portanto, deste ponto de vista, o que se deve prever para o futuro é que o projeto do “novo Israel” de Benjamin Netanyahu deverá seguir em frente, sobretudo quando se tem em conta que a Autoridade Palestina carece de credibilidade e força mesmo entre os palestinos.
Também aqui, como no caso da Ucrânia, a Faixa de Gaza e a Cisjordânia já se transformaram numa “zona de fratura” do sistema internacional, mantendo vivo o conflito crônico, subterrâneo e milenar entre o “ocidente cristão” e o “mundo islâmico”, por trás da disputa hegemônica entre as “potências ocidentais” e as “potências eurasianas”.
- A disputa de Taiwan
O terceiro grande conflito no sistema mundial gira em torno da ilha de Taiwan, onde os EUA estabeleceram o elo mais importante do seu cerco militar de contenção da China. É outra disputa que já dura mais de 70 anos, desde quando a ilha foi transformada – em 1949 – num refúgio das tropas nacionalistas do General Chiang Kaishek, derrotadas pela Revolução Comunista. Taiwan tinha então apenas sete milhões de habitantes e só sobreviveu como “província rebelde” graças à proteção militar dos EUA.
Na prática, Taiwan se transformou num território “vassalo” dos EUA, com a pretensão irrealizável de “reconquistar” e “reunificar” a China. No entanto, a situação mudou radicalmente depois da do Comunicado de Shangai, em 1972, com o reconhecimento, por parte dos EUA, de que Taiwan é parte inseparável do território chinês.
Essa convivência, entretanto, se modificou uma vez mais na década de 90, depois do fim da Guerra Fria, quando o primeiro governo eleito de Taiwan propôs a independência da ilha, mesmo sem contar com o apoio explícito dos EUA. A proposta provocou imediata mobilização militar da China, trazendo de volta ao Estreito de Taiwan os porta-aviões da Sétima Frota dos EUA. E tudo indica que exatamente nesse momento foi concebida a estratégia chinesa de criação de um poder naval autônomo, capaz de derrotar as forças americanas no Mar do Sul da China. Como consequência, hoje a China possui a maior frota naval do mundo e o maior poder naval da Ásia.
Mesmo assim, hoje os EUA controlam todos os pontos estratégicos entre o Mar do Japão, o Oceano Índico e o Pacífico Sul capazes de bloquear instantaneamente os fluxos comerciais e energéticos indispensáveis à sobrevivência diária da China. Ao mesmo tempo, os norte-americanos sabem que os chineses podem ocupar e vencer Taiwan em poucos dias ou semanas, mesmo com a intervenção americana. E sabem que uma eventual derrota americana na batalha em torno da ilha afetaria seu poder naval no sul do Pacífico.
Na verdade, se a China atacar Taiwan, haverá uma “ordem mundial” nas próximas décadas; mas se não o fizer, haverá outra “ordem” inteiramente diferente, e o mesmo aconteceria caso os norte-americanos ultraassem a “linha vermelha” definida pelos chineses e resolvessem sustentar a independência de Taiwan. Nesse contexto, quem “piscar primeiro” ou cometer um “erro de cálculo” poderá enfrentar consequências catastróficas. Por isso, o mais provável é que este conflito permaneça como está nos próximos anos, e que Taiwan se transforme em mais um foco de atrito permanente entre China e EUA, com a diferença, com relação à Ucrânia e à Faixa de Gaza, que a “linha vermelha”, neste caso, estará separando duas grandes civilizações que lutam pela supremacia militar no Mar do Sul da China e em todo o Leste Asiático.
- A “guerra econômica” do G7 contra a Rússia e a China
Neste início do século XXI, os EUA têm utilizado de forma cada vez mais frequente as “sanções econômicas” contra seus adversários, como Coreia do Norte, Irã e Venezuela, e mais recentemente, Rússia e China. Logo depois da invasão russa do território da Ucrânia, em fevereiro de 2022, os EUA e seus aliados do G7 lançaram um “pacote” coordenado de sanções comerciais, tecnológicas e financeiras que teve como objetivo paralisar a economia russa, no curto prazo, e aleijá-la no longo prazo, contendo sua ofensiva militar dentro da Ucrânia, incluindo o congelamento e expropriação dos ativos e reservas russas depositados nos bancos europeus e norte-americanos.
No entanto, o balanço desse ataque contra o sistema financeiro, comercial e produtivo russo tem sido negativo para os países da OTAN. A economia russa resistiu e superou o ataque imediato, redesenhou seu modelo de produção nacional e sua estratégia econômica de inserção internacional, e voltou a crescer, enquanto as economias europeias entraram num processo prolongado de desaceleração, estagnação ou paralisia.
E o mesmo deve ser dito no caso da China, que vem sofrendo um bloqueio econômico cada vez maior, e que deve aumentar durante o segundo mandato de Donald Trump. Mas que tem mantido seu desempenho e aumentado sua capacidade de inovação endógena, reduzindo sua dependência dos mercados externos, sobretudo no caso da produção dos semicondutores indispensáveis para o desenvolvimento de sua infraestrutura digital civil e militar.
Muitos analistas econômicos consideravam quase impossível que a China pudesse alcançar ou superar os EUA, conquistando sua autonomia tecnológica. Mas hoje ela é líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro, nos setores aeroespacial, robótico, microeletrônico, de telecomunicação, energia nuclear, meio ambiente, química, biotecnologia, inteligência artificial, materiais avançados e tecnologia quântica.
O balanço dessas duas guerras econômicas do G7 contra a Rússia e a China, portanto, sugere que a eficácia desse tipo de ataque variará segundo o potencial interno dos países que serão atacados. Os países do G7 parecem ter calculado mal o poder de resistência da Rússia, que não é apenas uma potência energética, mas é também uma potência que domina avançada tecnologia militar, além de possuir o maior arsenal atômico do mundo. Além disso, o G7 não avaliou a possibilidade russa de reorganizar sua economia na direção da Ásia, o que tem lhe permitido “fugir” – pelo menos parcialmente – dos circuitos monetários e financeiros dominados pelo dólar e pelo euro. E o mesmo deve ser dito com relação à guerra econômica norte-americana contra a China, que vem demonstrando uma resiliência e capacidade de inovação que não foram adequadamente antecipadas pelos norte-americanos.
De qualquer maneira, olhando para o futuro, é importante constatar que o uso explícito da moeda internacional – o dólar – e do sistema bancário e financeiro do G7, como armas de guerra, provocou uma crise de credibilidade tanto da moeda norte-americana como do sistema financeiro euro-americano. Ao mesmo tempo, a economia capitalista mundial vai se habituando a conviver com economias nacionais cada vez mais fechadas e mercados cada vez mais politizados, na contramão da ideologia econômica liberal que foi hegemônica nos dois últimos séculos de dominação mundial anglo-saxônicas.
A CONJUNTURA II: AS CRISES SOBREPOSTAS
Discursando no Salão Oval da Casa Branca, em outubro de 2023, o presidente norte-americano Joe Biden afirmou que “o mundo está vivendo uma virada histórica, porque a ordem mundial do pós-Segunda Guerra perdeu fôlego, e é necessário construir uma nova ordem”. Mais recentemente, no seu discurso na XVI Cúpula de Kazan, o presidente Xi Jinping saudou a emergência de uma nova “era global definida pela turbulência e pela transformação”. Poucos dias depois, em 7 de novembro, num discurso em Sochi, o presidente Vladimir Putin disse “que está nascendo uma ordem mundial inteiramente nova frente aos nossos olhos”. Por fim, de forma ainda mais categórica, Joseph Borrel, Chefe da Política Externa da União Europeia, declarou, em fevereiro de 2024, “que a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim”.
Por detrás desse aparente consenso, entretanto, escondem-se quatro grandes crises sobrepostas que em conjunto explicam o sentimento generalizado de que o sistema mundial está navegando sem controle e sem direção.
A primeira grande crise é a da “ordem bipolar” que vigorou entre 1945 e 1991, durante a Guerra Fria, mas cujos vestígios ainda estão presentes. Foi o período da hegemonia política e econômica do “multilateralismo liberal”, proposto e tutelado pelos EUA desde a criação da ONU e de seu Conselho de Segurança, em 24 de outubro de 1945. E desde a dos Acordos de Bretton Woods, em 22 de julho em 1944, que estabeleceram as regras de funcionamento do sistema monetário internacional, depois da guerra, quando o dólar se tornou a moeda de referência da economia capitalista. A “crise” dessa “ordem mundial” começou nos anos 1970, quando os EUA foram derrotados na Guerra do Vietnã e abandonaram o “padrão ouro-dólar” instituído em Bretton Woods.
Na década de 80, entretanto, os EUA redefiniram sua “estratégia internacional” e adotaram seu novo ideário das “reformas neoliberais”, que se transformaram na bandeira da “revolução conservadora” anglo-americana propagada urbe et orbi. Nasceu ali a nova grande utopia da “globalização econômica”, que encerrou o ciclo das políticas econômicas “desenvolvimentistas” e “keynesianas” do pós-Segunda Guerra. Mesmo assim, o golpe final na ordem constituída no pós-Segunda Guerra só foi desferido no final do século XX, quando os EUA e seus aliados da OTAN decidiram atacar e bombardear a Iugoslávia, em 1999, sem a permissão do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Naquele momento, as “potências ocidentais” se desfizeram unilateralmente da principal organização de “governança global” que elas mesmas haviam proposto e criado, pelos acordos de paz de 1944 e 1945.
A segunda grande crise, que ainda está em pleno curso, é a da “ordem mundial unipolar” que foi instalada depois da avassaladora vitória dos EUA na Guerra do Golfo, em 1991/92. Não houve nenhum tipo de acordo de paz naquele momento, e a nova “ordem mundial” foi imposta – simplesmente – pela assimetria do poder militar americano. E até a primeira década do século XXI, esse “império militar global” atuou como avalista, em última instância, do poder do dólar no projeto anglo-americano de globalização econômica.
A crise dessa “ordem mundial” começou com o ataque terrorista às Torres Gêmeas, em Nova York, ou pelas “guerras sem fim” dos EUA e seus aliados nas duas décadas seguintes, e chegou até a crise da Ucrânia, que culminou com a entrada das tropas russas no território de Donbass em 2022. E hoje já se pode dizer, como já vimos, que essa inciativa militar da Rússia acabou se transformando de fato no ponto final do unilateralismo americano, do pós-Guerra Fria.
A terceira grande crise é a da globalização econômica, apresentada pelas potências anglo-saxônicas como o novo “abre-te Sésamo” do desenvolvimento e da riqueza das nações. Hoje, a crise financeira de 2008 já aparece no retrovisor das principais potências e de seus Bancos Centrais, mas suas consequências mais perversas devem perdurar por muitos anos ou décadas, a começar pelo aumento geométrico da desigualdade entre a riqueza das nações, das classes sociais e dos indivíduos. A crise financeira de setembro e outubro de 2008 foi a pior da história global do capitalismo, e a devastação das economias americana e europeia só foi impedida graças à política heterodoxa do FED de criação de linhas de o ilimitado ao dólar (liquidity swap lines), que acabou com a autonomia dos Bancos Centrais dos países capitalistas que aderiram à política do FED.
A quarta grande crise foi diagnosticada pelo chefe da Política Externa da União Europeia, o espanhol Joseph Borrel, quando disse que a “era do domínio ocidental acabou”. Na verdade, Borrel estava falando de uma crise mais profunda e de largo fôlego, do poder e da hegemonia ocidental no sistema interestatal que os europeus criaram e dominaram nos últimos 300 anos. E, como consequência desses sucessivos reveses, o “velho Ocidente”, considerado sinônimo da “comunidade internacional” até bem pouco tempo atrás, vem perdendo força e legitimidade. E junto com o “velho Ocidente” vêm perdendo força, dentro do próprio Ocidente, todas as grandes utopias progressivas europeias do século XIX e XX. Assim com o “liberal-cosmopolitismo” e o “globalismo” norte-americano, do século XX, e as utopias socialistas, social-democratas e trabalhistas europeias do século XIX, que perderam sua identidade e hoje não têm mais nenhuma identidade própria nem poder de atração, dentro e fora da Europa. Deixaram o campo aberto para o retorno e o avanço das ideologias nacionalistas e fascistas de extrema-direita, na Europa, que vai assistindo ao esvaziamento também do seu projeto de unificação, que foi talvez a maior utopia das últimas décadas do século XX.
Assim mesmo, o grande impulso das ideologias nacionalistas, fascistas e de extrema-direita tem vindo dos próprios Estados Unidos, e por isso, ao se projetar o tempo futuro, não se deve esquecer jamais que mesmo despojado do seu “liberal cosmopolitismo”, os EUA seguem sendo o maior império militar que a história da humanidade já conheceu, com suas 742 bases militares e seus cerca de 400 mil soldados localizados fora de seu território, ocupando uma posição incontestável de poder em todos os oceanos e mares do mundo, além de controlar a maior parte do espaço aéreo mundial, e ter ainda clara superioridade no espaço sideral – um “dado de realidade” muito importante quando se quer prever o futuro geopolítico e ideológico da humanidade no século XXI.
A CONJUNTURA III: A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA E A TRANSIÇÃO ENERGÉTICA
De forma paralela com relação a essas quatro crises geopolíticas e econômicas, a humanidade está enfrentando, na terceira década do século XXI, um agravamento acentuado da chamada “crise ecológica”, com a multiplicação dos “fenômenos climáticos extremos” que ocorrem de forma cada vez mais frequente e completamente fora dos padrões normais, do ponto de vista da média histórica – enchentes, terremotos, maremotos e queimadas que se multiplicam ao redor do mundo.
Em 1972, na cidade de Estocolmo, Suécia, a “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente” reuniu 113 países e mais de 400 organizações governamentais e não governamentais para discutir, em conjunto, o novo desafio mundial da destruição ecológica e mudanças ambientais. Naquele momento, não houve consenso nem acordo final, devido à oposição dos países mais ricos, mas a “Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente”, adotada em 6 de junho de 1972, acabou se transformando na semente originária da ideia, projeto e utopia de um novo tipo de “desenvolvimento sustentável”, consagrada na década de 80 pelo Relatório Brundtland. Depois disso, foram realizadas várias reuniões anuais sobre a questão ecológica e as mudanças climáticas, destacando-se as de Kyoto, em 1997; Joanesburgo, em 2002; e Rio de Janeiro, em 2002 e 2012, culminando com o Acordo de Paris, assinado por 195 países em 2015. Foi neste último período, em particular depois da do Protocolo de Kyoto, que a agenda do “desenvolvimento sustentável” cruzou e se combinou, de forma definitiva, com a agenda da “transição energética”, desde que ficou comprovada a responsabilidade dos combustíveis fósseis por mais de 50% da emissão dos gases e por seu “efeito cascata” sobre outros recursos naturais.
Foi por esse caminho que o projeto do “desenvolvimento sustentável” se associou à proposta da “transição energética” de baixo carbono e ao projeto ético de construção de uma nova “economia verde”. Mas apesar do aparente consenso internacional, todos os dados indicam que a humanidade está longe de conter o aquecimento global, e que, pelo contrário, a situação vem piorando nos últimos anos, escapando ao controle dos organismos multilaterais. Por quê?
Primeiramente, porque não é uma tarefa fácil desmontar uma infraestrutura global ao redor do mundo, destinada a produzir e distribuir o combustível que move o sistema econômico e a vida dos cidadãos do planeta há mais de cem anos. Em segundo lugar, deve-se ter em conta que mais de 50% dos gases de efeito estufa são emitidos por não mais do que cinco ou seis países, e por não mais que 20 grandes empresas multinacionais. Em terceiro, deve-se ter em conta que esses países são os mais ricos e poderosos do planeta – entre eles, China, EUA, Índia, Rússia, Japão e Alemanha – e que as 20 maiores empresas responsáveis por cerca de 33% das emissões mundiais de gás carbono são grandes petroleiras privadas e públicas.
Por fim, o fator mais importante para explicar a semiparalisia do sistema internacional frente à crise climática é a própria crise e polarização do sistema mundial. O mundo está inteiramente fragmentado, tensionado e sem liderança, e é muito difícil constituir uma vontade política coletiva tão complexa como a que é requerida para levar à frente uma transição energética e econômica dessa magnitude, sem que exista uma liderança forte e convergente capaz de mover um mundo tão desigual e assimétrico numa mesma direção.
A LONGA DURAÇÃO: TENDÊNCIAS E INCERTEZAS
As sucessivas guerras americanas e europeias que se sucederam nas duas primeiras décadas do século XXI, até o início das Guerras da Ucrânia e de Gaza, foram desvelando aos poucos uma “conexão oculta” fundamental para a sustentação da “ordem mundial” instalada depois do fim da Guerra Fria. Uma conexão que ficou escondida pela retórica vitoriosa da globalização econômica, liberal e cosmopolita; e pela retórica universalista da “guerra global ao terrorismo” declarada pelos EUA depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. O que não ficou visível naquele primeiro momento foi que a construção da infraestrutura militar global dos EUA, antes e depois da “guerra ao terror”, com mais de 700 bases militares ao redor do mundo, era uma condição sine qua non do projeto de globalização econômica, e que a própria globalização econômica era um instrumento de poder fundamental deste novo tipo “império militar e financeiro global”. E é precisamente esse projeto global dos EUA e de seus sócios do G7 e da OTAN que está sendo questionado pela ascensão econômica da China e da Índia, e pelo limite militar que lhe foi imposto pela Rússia, primeiro na Geórgia, em 2008, e depois na Ucrânia, em 2022. E é a expansão dessa “ordem imperial e cosmopolita” que está sendo barrada e experimentando um processo de fragmentação e declínio que vem se manifestando através das várias crises sobrepostas de que estivemos falando.Como consequência, olhando da perspectiva braudeliana da “longa duração”, pode-se afirmar que estão acabando também o monopólio e a exclusividade ética das “potências ocidentais”, em particular Inglaterra, França e EUA, que foram os grandes “criadores da moral internacional” e do direito internacional vigente nos últimos 200 anos do “sistema interestatal capitalista”. Portanto, esses países já não conseguirão mais comandar de forma exclusiva o processo de formulação das regras e instituições da nova ordem mundial que nascerá dessa “grande transformação” contemporânea. É muito pouco provável, também, que as potências do Atlântico Norte consigam “re-bipolarizar” o sistema mundial, de forma a alinhar, de um lado, seus “parceiros democráticos”, e de outro, os “parceiros autoritários” da China e da Rússia.
Fala-se com frequência, entretanto, de um processo em curso de desglobalização da economia capitalista mundial. E, de fato, depois da crise econômica de 2008, da pandemia do Corona 19 dos anos 20 e 21, e finalmente, depois do início da Guerra da Ucrânia, que já se prolonga desde 2021, o movimento de globalização econômica e da integração das cadeias produtivas cada mais globais de produção e comercialização de mercadores sofreu um revés. Uma reversão que adquiriu uma força e extensão ainda maior com a guerra comercial declarada pelos Estados Unidos contra China, a segunda maior economia do mundo capitalista, e agora ainda mais, com a política protecionista anunciada pelo novo governo americano de Donald Trump. Um processo de fragmentação que deve se acentuar com a fuga cada vez mais frequente dos países do BRICS e do Sul Global, com relação aos circuitos controlados pelo dólar e pelas finanças americanas que foram utilizadas nas últimas décadas como arma de guerra contra os “desafetos” norte-americanos.
Apesar de tudo, há que ter claro que a seta do tempo da história e da economia é irreversível, e que apesar de alguns recuos, a história segue em frente, assim como o processo da “globalização produtiva e financeira”. deverá tomar novas formas e deverá enfrentar uma onda nacionalista nos próximos anos. No entanto, é muito pouco provável que as grandes potências econômicas mundiais consigam se voltar para dentro de si mesmas. O desenvolvimento capitalista sempre foi – simultaneamente – nacionalizante e internacionalizante, e assim seguirá sendo, só não é possível prever com exatidão as curvas do caminho futuro da internacionalização, depois dessa nova “onda mercantilista” liderada pelos Estados Unidos.
Enquanto dure essa quarta grande “explosão expansiva” do sistema mundial, será muito difícil estabelecer consensos e regras globais, porque o sistema interestatal se universalizou e deixou de ser europeu, para incluir múltiplas culturas e civilizações, muito diferentes e irredutíveis entre si. E todas elas estão envolvidas numa disputa que deve se prolongar por um longo período. Assim mesmo, a competição entre novos polos de poder mundial deve provocar um salto tecnológico sem precedentes na História, numa velocidade que impede de antecipar todas as suas consequências. É possível perceber, no entanto, que essa megadisputa multipolar deverá se projetar sobre o espaço sideral, militarizando a “corrida espacial” e apontando para a construção de infraestruturas científicas e militares competitivas, em vários níveis e planos do cosmos, tanto na Lua, como em Marte.
“MAKE AMERICA GREAT AGAIN”
Na entrada de 2025, a novidade mais instigante e mais carregada de incertezas é a posse do novo presidente norte-americano, Donald Trump. Sua avassaladora vitória nas eleições presidenciais do dia 6 de novembro de 2024 refletiu uma enorme insatisfação da população americana, deserdada pelo fracasso da utopia da globalização, que foi a grande bandeira dos democratas e liberal-cosmopolitas da década de 90. Ao mesmo tempo, do ponto de vista internacional, o projeto vitorioso de Donald Trump reconhece implicitamente o “declínio” do poder e da influência norte-americana ao redor do mundo, e sua proposta lembra a de Ronald Reagan nos anos 1980, que também se propunha a recuperar a primazia norte-americana após a derrota no Vietnã e a crise econômica dos anos 1970.
Ainda não é possível saber se a reeleição de Donald Trump será apenas uma rodada a mais da “gangorra” política americana. Desta vez, entretanto, Trump não pode reeleger-se e terá um mandato de apenas quatro anos; contará, ao mesmo tempo, com uma maioria conservadora no Congresso, no Senado e na Corte Suprema, e disporá de uma equipe de auxiliares homogênea. Ou seja, iniciará seu governo com uma grande quantidade de poder nas mãos, o que lhe permitirá levar à frente, de forma rápida e imediata, sua agenda nacional, conservadora e de extrema-direita, com relação aos imigrantes, à preservação ecológica, aos direitos das minorias, ao direito ao aborto, à desmontagem das políticas sociais e às agências de regulação estatal etc. Na área internacional, entretanto, o horizonte é menos claro, porque todos os caminhos de Trump envolvem outros países soberanos e potências que não estão dispostos a se submeter ao desideratum norte-americano. A concepção internacional de Donald Trump foi sempre a de um mundo organizado a partir da “força”, e não a partir de “valores universais”. O projeto internacional de Trump abre mão inclusive da “excepcionalidade moral” dos EUA e adota o “interesse nacional americano” como a grande referência de todas as suas escolhas, decisões e alianças. Como consequência óbvia, Trump desacredita e condena a maior parte das iniciativas e instituições multilaterais criadas pelos próprios EUA, desde a Segunda Guerra Mundial, incluindo os acordos comerciais e os acordos mais recentes sobre a “questão climática” e a “transição energética”. Deste ponto de vista, a posse de Donald Trump representa um ataque mortal a tudo o que tenha a ver com o liberal-cosmopolitismo e o globalismo que dominou a cena internacional desde o fim da Guerra Fria. Um ataque americano contra sua própria obra, que parece contraditório e incompreensível para a maioria dos cientistas políticos norte-americanos, mas que é uma estratégia normal e recorrente dentro do sistema interestatal, frente às situações-limite de ameaça ao poder e à primazia de uma potência hegemônica, como foi o caso dos EUA na década de 80 do século ado, e agora de novo, nesta terceira década do século XXI. Foi o que chamamos em algum momento de “paradoxo do hiperpoder”, e ainda, de “síndrome de Babel”, para nos referir explicitamente à política internacional do primeiro mandato de Donald Trump.
Seja como for, entretanto, tudo aponta para um novo cenário internacional de competição aberta e permanente entre as grandes potências, com abandono do multilateralismo nas relações entre EUA e China, Rússia, Índia e União Europeia. Acrescente-se a tentativa simultânea do governo americano de submeter pura e simplesmente os países mais fracos e próximos dos EUA, como é o caso de Cuba, Nicarágua, Venezuela, e mesmo Brasil, no “hemisfério ocidental”. Assim mesmo, com relação aos grandes conflitos que estão na ordem do dia e que Donald Trump se diz decidido a pacificar de imediato, após sua posse, mesmo contra a opinião dos seus principais aliados, há que olhar para cada um deles em separado, e com a máxima cautela.
Com relação à guerra econômica e tecnológica com a China, é muito provável que Donald Trump consiga negociar acordos imediatos e pontuais. E não é improvável que Trump relaxe o apoio americano a Taiwan, deixando o caminho aberto, no médio prazo, para o controle continental da ilha. No entanto, a competição econômica e tecnológica, e a escalada armamentista entre os dois países devem aumentar de intensidade e profundidade nos próximos anos. Até porque a China já foi definida pelos estrategos americanos como sendo o principal competidor e principal ameaça para os EUA no século XXI. E Donald Trump compartilha integralmente desta mesma visão dos democratas e de boa parte da sociedade norte-americana.
Por outro lado, no caso do Oriente Médio, as diferenças entre as posições de democratas e republicanos também são muito pequenas, devido à relação umbilical que une os EUA e a Inglaterra com Israel. Donald Trump deve lograr um acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas, mas ao mesmo tempo deve manter sua política de pressão máxima na região, mas neste seu segundo mandato ele deve encontrar no Oriente Médio uma realidade militar e política diferente da que existia no seu primeiro mandato, sobretudo depois dos Acordos Estratégicos assinados pelo Irã com a Rússia e a China, e depois da reaproximação entre o Irã e a Arábia Saudita, promovida pela China e abençoada pela Rússia.
Já na Europa, o panorama é muito diferente, e existe um desacordo total entre democratas e republicanos sobre como conduzir a guerra e as negociações de paz na Ucrânia. Aqui, sim, o mais provável é que se iniciem de imediato negociações de paz, com o reconhecimento implícito, por parte dos EUA, da vitória militar russa. Mas também aqui não há que se ter ilusões. Depois de sua vitória militar e econômica, os russos provavelmente não aceitarão negociar apenas a “questão ucraniana”’ e já não aceitarão mais o mundo unipolar tutelado pelos EUA, e quererão renegociar os termos que lhes foram impostos após a derrota da URSS em 1989/91.
Este é um tema no qual europeus e norte-americanos divergem completamente; além disso, não se concebe uma reaproximação entre europeus e russos. Pelo contrário, o mais provável é uma disparada da corrida armamentista e tecnológica entre as duas metades do continente eurasiano. Na verdade, se a Rússia desaparecesse como “inimigo necessário”, os próprios EUA e a Inglaterra teriam que sucatear parte importante de sua infraestrutura militar global, construída com o objetivo de conter o “expansionismo russo”, envolvendo um investimento gigantesco em armas e em todo tipo de recursos materiais e humanos, civis, militares e paramilitares. E a OTAN, em particular, perderia sua razão de ser, levando de roldão a estrutura de poder atual da União Europeia.
Por isso, há que se ter muita atenção aqui, porque a ação pacificadora de Trump na Ucrânia não é um ato de fé pacifista, tampouco um gesto de amizade e iração por Vladimir Putin. Trata-se do reconhecimento puro e simples de que a Rússia ganhou porque tem mais poder do que a Ucrânia e é superior militarmente à OTAN. Mas isto não significa que Trump se proponha a ser parceiro ou aliado de Putin. Pelo contrário, significa que ele adota a mesma régua utilizada pela Rússia na Ucrânia para aplicá-la em outros espaços de disputa com a própria Rússia, como é o caso do seu desejo manifesto de conquistar a Groenlândia e incorporar o Canadá. Se sua ideia se transformasse em realidade, ele estaria criando um bloco territorial equivalente ao da Rússia. Ao mesmo tempo, estaria deixando para trás e desmobilizando a famosa “cortina de ferro” inventada pelos ingleses, e estaria transferindo para o Ártico a primeira linha de cerco e enfrentamento militar e atômico entre os EUA e a Rússia. Avançaria sobre o território de seus próprios “Estados vassalos” – Canadá e Dinamarca –, apostaria pesado no seu complexo militar para ocupar esses novos territórios americanos, e aria a disputar também o corredor econômico que está se abrindo com o degelo polar. Da mesma forma, sua reivindicação do Canal do Panamá faz parte do seu projeto de cerco e guerra econômica com a China, com quem ao mesmo tempo pretende negociar um modus vivendi imperial, que seria compartilhado com a Rússia. Uma composição que lembra teoricamente o “super-imperialismo” de que falava Karl Kautski no início do século XX. Só que agora reunindo, no comando do mundo, três grandes impérios supranacionais, aos quais se poderiam agregar eventualmente, no futuro, a Índia e uma outra União Europeia. Uma verdadeira revolução geopolítica mundial, e uma aposta ainda mais audaciosa do que a de Ronald Reagan há 45 anos atras.
Por fim, os países periféricos da América Latina e da África não têm a menor importância no projeto internacional de Donald Trump, que supõe sua submissão pura e simples ao poder monetário e econômico dos EUA. Neste caso, é muito provável que se repita o que ou nos anos 1980, quando a periferia capitalista foi submetida e/ou derrotada pela política econômica norte-americana do “dólar forte” e do “keynesianismo militar” de Ronald Reagan, sendo depois “resgatada” pelas políticas e reformas neoliberais impostas pelos “programas de ajuste” do FMI. Do ponto de vista do poder americano, a estratégia de Reagan foi extraordinariamente bem-sucedida, mas Trump enfrentará agora um mundo muito diferente. Só para relembrar, na década de 80, a URSS estava muito debilitada do ponto de vista econômico e a China estava alinhada com os EUA. Agora, a Rússia recuperou sua capacidade tecnológico-militar e atômica, e estabeleceu uma aliança estratégica de longo prazo com a China e o Irã, que são o núcleo duro militar do grupo do BRICS.
Resumindo, portanto, o que se deve esperar no campo internacional para os próximos quatro anos da istração Trump: os EUA abdicam do projeto de universalização messiânica de seus valores nacionais e de uma “ordem mundial regida por regras”. Propõem-se a atuar no sistema mundial a partir exclusivamente de seus “interesses nacionais”, utilizando sua força bruta, financeira, tecnológica e militar para impor sua vontade onde considerem necessário, apelando, só em última instância, ao recurso da guerra. Isso faz prever um cenário de múltiplos e sucessivos conflitos de interesse, em particular com os países do BRICS, liderados pela China e pela Rússia.
O GRANDE CHALLENGER TECNOLÓGICO
Os países que se propõem a mudar sua posição dentro da hierarquia internacional também mudam, em algum momento, seu sistema de pesquisa e inovação. E foi isto exatamente que aconteceu com a China a partir de meados da 90, quando ou a adotar um modelo de investigação e inovação muito similar ao norte-americano, alcançando um notável sucesso nas duas décadas seguintes.
No caso norte-americano, pode-se dizer que, durante a II Guerra Mundial, e depois, durante a Guerra Fria, a competição bélica atuou como grande força motora dos principais avanços tecnológicos na segunda metade do século XX, no campo aeroespacial e da energia nuclear, e nos setores da computação, fibras óticas e transistores, assim como da química, da genética e da biotecnologia. Em todos esses casos, a estratégia militar dos Estados Unidos funcionou como a bússola e o primeiro motor das novas tecnologias “duais” que revolucionaram a economia mundial a partir dos anos 1950.
No caso da China, esse processo foi desencadeado após o assédio naval norte-americano de 1996, quando os chineses tomaram consciência da necessidade de modernizar seu sistema de defesa para enfrentar as “regras da competição militar do sistema interestatal” inventado pelos europeus. Neste momento, os chineses mudam a estratégia dos seu sistema de pesquisa científica e tecnológica, adotando o mesmo modelo americano de integração da academia com o setor público e privado, na produção de “tecnologias duais” capazes de dinamizar, ao mesmo tempo, o sistema de defesa e a economia civil. Hoje a China possui o segundo maior orçamento militar do mundo, e os gastos com a “defesa” já alcançam cerca de 30% de todo o gasto governamental com pesquisa e inovação, sendo os grandes responsáveis pelo avanço tecnológico chines das três últimas décadas.
Muitos analistas econômicos consideravam muito difícil que a China pudesse superar os Estados Unidos, ou alcançar autonomia neste campo para seu sistema de defesa. Na prática, entretanto, depois de 30 anos de esforço tecnológico concentrado, a China é líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas pelos especialistas como as mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro, nos setores de defesa, aeroespacial, robótica, microeletrônica, telecomunicação, energia nuclear, meio ambiente, química, biotecnologia, inteligência artificial, materiais avançados e tecnologia quântica. E o mais provável é a China logre superar seu atraso também no campo dos semicondutores, uma verdadeira “linha vermelha” para o establishment militar norte-americano.
O BRICS, O G7, E A “REVOLTA SÍRIA”
No último dia do ano de 2024, a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, Mao Ning, afirmou que, na opinião do Ministro Wang Yi, o crescimento do Sul Global vem sendo um capítulo decisivo na história das grandes transformações em curso no sistema mundial. E todos os analistas internacionais concordam que a XVI Cúpula Anual do BRICS, realizada na cidade de Kazan, na Rússia, foi um dos acontecimentos diplomáticos mais importantes do ano de 2024.
No dia 1º de janeiro de 2025, o Brasil assumiu a presidência do BRICS, devendo enfrentar de imediato o ataque do novo governo de Donald Trump, que já ameaçou com tarifas de 100% os países e blocos de países que se propunham a substituir o dólar como moeda de referência de seu comércio internacional. Este é exatamente o caso do BRICS e da posição que este vem defendendo, sobretudo pelo Brasil e pela Rússia. Também neste caso, o BRICS apresenta-se hoje muito mais forte e preparado para este confronto do que no primeiro mandato do novo presidente norte-americano, que dará um tiro no pé se tentar atacar em conjunto todos os países do BRICS.
Como é sabido, o BRICS não é uma organização militar do tipo OTAN, nem uma organização econômica do tipo União Europeia. Nasceu como um ponto de encontro – quase informal – e um espaço de convergência geopolítica e econômica entre países situados fora do núcleo central das grandes potências tradicionais. No início eram quatro, depois entrou a África do Sul e aram a ser cinco; no ano ado, o grupo aumentou para 10, e agora serão 23, depois da XVI Cúpula do BRICS. Caso todos os novos convidados se tornem “países parceiros” do BRICS – Argélia, Nigéria, Uganda, Vietnã, Malásia, Tailândia, Uzbequistão, Cazaquistão, Turquia, Bielorrússia, Cuba e Bolívia –, o PIB do BRICS subirá para 43% do PIB global, transformando-se numa potência energética e alimentar que concentra 50% das reservas mundiais de petróleo e 60% das reservas mundiais de gás; além de 74% da produção mundial de arroz, 44% de milho, 48% de soja e cerca de 56% de trigo. A Nigéria já é hoje a maior economia africana, e a Indonésia deverá ser a quinta maior economia do mundo em 2030, segundo o FMI.
Do ponto de vista geopolítico, a incorporação da Turquia será sem dúvida a maior aquisição do BRICS, não apenas por ser membro nato da OTAN, mas por ser mais uma potência islâmica, econômica e militar formando bloco com o Irã e a Arábia Saudita, capaz de redesenhar a ordem geopolítica do Oriente Médio. Uma nova configuração de forças que talvez tenha sido experimentada, pela primeira vez, na recente “revolta síria” que logrou derrubar e substituir o governo de Bashar al-Assad praticamente sem resistência nem maior violência, até o momento. Isso permite levantar a hipótese de que tenha havido algum tipo de negociação prévia envolvendo vários membros do BRICS – como Rússia, Irã, Turquia, Egito e China – que possam ter participado de uma negociação envolvendo EUA e Israel, de forma menos direta. Com níveis de envolvimento, de ganhos e de perdas diferenciados entre todos estes países envolvidos. Iran perdeu muito e Israel ganhou posições importantes, no curto prazo, mas não está claro qual será o resultado no médio prazo para estes dois países, tendo em conta que a Turquia teve uma participação decisiva na derrubada de Assad, logo depois de ser convidada para participar do BRICS. Mesmo que esta hipótese possa ter fundamento, entretanto, algo muito mais difícil deverá ser a reconstrução, unificação e governo da Síria nos próximos anos.
Seja como for, apesar de o BRICS ter sido inicialmente uma organização muito mais de consultas e ajudas mútuas do que de contestação da ordem econômica controlada pelos EUA e pelo G7, isto já está mudando, devido à belicosidade crescente entre EUA e China, e devido sobretudo à guerra, no território da Ucrânia, entre os países da OTAN e a Rússia, “sócia-fundadora” da Organização, além da Guerra de Gaza, que envolve o Irã, pelo menos indiretamente. No meio deste conflito, devido à guerra econômica do G7 contra a Rússia, de que já falamos, o BRICS deu grandes os na criação de novos circuitos monetários e financeiros, contornando o boicote das estruturas e instituições econômicas e financeiras utilizadas pelos EUA e seus aliados europeus e asiáticos, que utilizam o dólar e seus sistemas bancários como armas de guerra contra a Rússia e contra todos os países que resistem ao poder hegemônico das “potências ocidentais”.
Como consequência, o BRICS já se tornou uma referência no sistema internacional, e dependendo do comportamento futuro dos EUA e dos europeus, poderá se transformar, nos próximos anos, num grupo de poder que estreitará cada vez mais a hegemonia monetário-financeira dos EUA e seus aliados do G7. E é sobre este ponto que deve se concentrar o ataque anunciado de Donald Trump, propondo-se a defender a supremacia internacional do dólar pela força e buscando atingir e enquadrar sobretudo os países menores e endividados, como ocorreu nos anos 80 com a América do Sul, e com o Brasil, de forma muito particular.
UM CONTINENTE PARTIDO
A América do Sul nunca ocupou lugar importante na geopolítica mundial ou na disputa das “grandes potências” pelo poder global. E nenhum de seus países jamais foi uma grande potência, mesmo quando Argentina e Brasil possam ter ocupado lugar de destaque na hierarquia do desenvolvimento capitalista. E apesar da sempre lembrada Doutrina Monroe, formulada em 1823, a América do Sul nunca teve grande importância na política externa norte-americana. E na verdade, não tem a menor relevância na visão mundial de Donald Trump, se não fosse pelo fato de que seu futuro Secretário de Estado, o senador Marco Rubio, é de origem cubana e devota uma animosidade antiga com relação aos governos de Nicarágua, Venezuela, e sobretudo Cuba.
Essa animosidade, muito mais do que a solidariedade com governantes dóceis e de extrema-direita – como Javier Milei e Nayib Bukele (e Donald Trump, em última instância) –, pode gerar um efeito em cadeia dentro do continente sul-americano, análogo ao dos golpes de Estado patrocinados pelos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70 do século ado. Sobretudo se tivermos em conta o processo recente vivido pela América do Sul, no início do século XXI, quando quase todas as economias exportadoras da América do Sul cresceram empurradas pelo boom internacional das commodities e do crescimento acelerado da China e da Índia.
Esse cenário mudou radicalmente depois da crise econômica e financeira de 2008, quando as economias nacionais da América do Sul perderam tração e o continente voltou a se partir, com cada um dos seus países voltando-se para si mesmo, de costas para qualquer tipo de projeto de integração regional. Um processo de fragmentação e isolamento que aumentou ainda mais com a crise da Covid-19, quando o continente recuou cerca de 10 anos do ponto de vista de seus indicadores sociais.
Como consequência, na terceira década do século XXI, frente às guerras da Ucrânia e de Gaza, ao esfacelamento em curso do sistema internacional e ao deslocamento de seu eixo econômico do mundo na direção da Ásia, a América do Sul perdeu relevância geopolítica e geoeconômica. E o mais provável é que esse declínio se acentue nos próximos anos, na medida em que as economias sul-americanas sigam sendo pequenas unidades “primário-exportadoras”, isoladas e assediadas pelo novo governo de Donald Trump. Com a exceção do Brasil e da Argentina, talvez, e da Venezuela, por possuir isoladamente a maior reserva de petróleo do mundo. Como consequência, a América do Sul se apresenta hoje sem unidade ou qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de orientar sua inserção coletiva na nova ordem mundial gestada pelo uso cada vez mais explícito da força.
Nesse contexto, e tendo em conta a oposição declarada do novo Secretário de Estado norte-americano, não é improvável que os EUA voltem a interferir de forma direta no continente sul-americano, transformando-o num palco secundário de seus conflitos globais, ainda que de forma diferente do período da Guerra Fria, através de barreiras comerciais e de sanções financeiras cada vez mais extensas e asfixiantes.
Neste ponto chama atenção o paralelismo entre o que ocorreu na América do Sul nos anos 1970-80. Naquele momento, a ditadura chilena do Gal Pinochet e sua experiência pioneira das políticas econômicas ultraliberais transformaram o Chile num laboratório e vitrine mundial daquilo que o economista norte-americano Paul Samuelson chamou de “fascismo de mercado”. E hoje de novo, a experiência ultraliberal e antiestatal do presidente Javier Milei, na Argentina, já se transformou na nova versão do “fascismo de mercado” preconizado pelo governo de Donald Trump para o mundo periférico dos Estados Unidos, em particular a América Latin – ou seja, uma política protecionista e mercantilista na metrópole, junto com a promoção ativa de políticas ultraliberais na periferia.
BRASIL: A INCÓGNITA DA EQUAÇÃO
Hoje é impossível discutir a inserção internacional do Brasil sem colocar seus objetivos e compromissos sul-americanos numa perspectiva de expansão global de seus interesses econômicos estratégicos. Uma expansão de influência e de poder, entretanto, que deverá estar sob forte pressão nos próximos anos, com a prolongação da chamada “crise venezuelana”, entre os governos da Venezuela e dos Estados Unidos, à qual se deve somar, muito provavelmente, uma nova e radicalizada “crise cubana”
Nas duas primeiras décadas do século XXI, o Brasil estabeleceu alianças com países de fora do continente sul-americano, para propor uma mudança das instituições e regras de gestão da ordem mundial consolidadas depois do fim da Guerra Fria. Com esse objetivo, o governo brasileiro tem privilegiado suas relações e alianças cruzadas, muitas vezes transitórias, com outras “potências continentais” além dos Estados Unidos, como é caso de China e Índia, na Ásia; e da África do Sul, além dos países árabes e islâmicos do Oriente Médio. Países com os quais, além de tudo, o Brasil tem hoje mais afinidades culturais e interesses econômicos do que com seus pequenos vizinhos da América do Sul.
Deste ponto de vista, a principal iniciativa brasileira que se projeta sobre os horizontes do futuro e pode influenciar decisivamente os caminhos do resto do continente sul-americano, é sua participação como “sócio fundador” do grupo do BRICS+, que em 2025, sob a presidência brasileira, deve chegar a 23 países – como já vimos – que ocupam posição de destaque em suas respectivas regiões, devido ao tamanho de seu território, de sua população e de sua economia.
Dentro do BRICS, é o único país “continental” que está situado numa região sem disputas territoriais com nenhum de seus vizinhos. Neste sentido, dependendo das decisões que venha a tomar, o Brasil tem pela frente, nas próximas décadas, a possibilidade de uma expansão pacífica em sua própria região, e a grande possibilidade de transformar-se, ao lado da China, nas duas potências mundiais com maior potencial para assumir em conjunto a liderança de uma nova economia industrial sustentável e de baixo carbono, mesmo contando com a indiferença ou oposição dos Estados Unidos. Pode se transformar numa das grandes “economias verdes” e tecnologicamente de ponta no sistema econômico mundial
E aqui voltamos à importância das decisões e alternâncias de governo, porque para expandir-se pelo mundo, nesta primeira metade do século XXI, o Brasil terá que fazer algumas escolhas que determinarão seu futuro e, muito provavelmente, o futuro da América do Sul. Em primeiro lugar, terá que definir seu próprio projeto mundial e especificidade com relação aos valores, diagnósticos e posições dos europeus e norte-americanos nos grandes temas e conflitos da agenda internacional. Em seguida, terá que decidir se aceita ou não a condição militar de “aliado estratégico” de Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, ou se, pelo contrário, optará por um lugar autônomo no novo mundo multipolar que está nascendo, e no qual ele poderá ser uma referência pacificadora do sistema mundial.
Este caminho até meados do século XXI supõe, contudo, que o Brasil aumente sua capacidade de decisão estratégica autônoma nas duas próximas décadas, através de uma política hábil e bem-sucedida de competição e complementaridade econômica, política e diplomática com os Estados Unidos, com a preservação simultânea de suas novas alianças fora do Hemisfério Ocidental. Se não for assim, e se o Brasil não vier a ser a locomotiva econômica da América do Sul, os demais países do continente deverão se transformar, no século XXI, em pequenas estrelas isoladas e cadentes dentro de um imenso “universo em expansão”.
A MULTIPOLARIDADE E O FUTURO
Eugene Primakov (1929-2015), intelectual e político russo, formulou pela primeira vez, no início do século XXI, a ideia de um “mundo multipolar”. É muito comum ouvir políticos e analistas internacionais afirmarem que o sistema internacional está transitando de uma “ordem mundial unipolar e globalizada” para uma nova “ordem mundial multipolar e desglobalizada”.
Essa equação aparentemente simples esconde, no entanto, uma enorme complexidade, porque a palavra “transição” sugere linearidade, direção e conhecimento do lugar de onde se está partindo e do lugar para onde se está indo, e hoje não está claro nem o ponto em que se encontra a transformação do sistema mundial, muito menos o que viria a ser uma nova ordem mundial multipolar. Em termos muito amplos, pode-se dizer que, de um lado, se encontram várias potências regionais em “ascensão”, e de outro, o bloco das “potências ocidentais” que resistem a dar agem às novas potências regionais ou globais, e não se dispõem a renunciar à supremacia mundial que conquistaram e exerceram nos últimos 300 anos, pelo menos. Esse enfrentamento está se dando de forma cada vez mais direta e violenta, sem regras ou grandes preocupações com a ética internacional, e sem respeito às “regras” da “economia de mercado”, permitindo-se a manipulação política da moeda, das finanças e da concorrência econômica.
Não estamos vivendo um momento de vitória e submissão, nem de negociação e acordo entre países que competem entre si e que se dispõem a negociar uma nova ordenação hierárquica do poder mundial. E nenhum país ou conjunto de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo. O que existe de fato é guerra, militarização, decomposição econômica e crise social, e uma perda generalizada das referências éticas construídas pelo Ocidente nos últimos séculos. Sobretudo depois que os EUA e seus aliados europeus caíram prisioneiros da armadilha que eles mesmos montaram na Palestina, sendo obrigados a armar e sustentar o Estado de Israel, mesmo sabendo do genocídio que está sendo praticado contra o povo palestino na Faixa de Gaza.
Por outro lado, tampouco existe o menor consenso sobre o “ponto de chegada” dessa “transição”. O único que sabemos do ponto de vista puramente formal é que uma ordem multipolar não deverá ser igual a uma ordem “bipolar” como a que vigorou durante a Guerra Fria, entre 1945 e 1991; nem deverá ser igual à ordem “unipolar”, que vigorou depois do fim da União Soviética, e da vitória norte-americana na Guerra do Golfo, em 1991/92.
Não se pode ir muito além dessa especulação formal sem conhecer o resultado das guerras que estão em curso, e sem poder definir quais serão os membros do “clube das grandes potências” dessa nova ordem multipolar. Ninguém duvida de que este clube incluirá, pelo menos, EUA, China, Rússia, Índia e, talvez, uma União Europeia modificada, militarizada e recentralizada a partir da Alemanha. Ainda assim, não se sabe se haverá hierarquia, e qual será, entre esses países. Se haverá alguma hegemonia interna, ou se todos aceitariam uma configuração horizontal entre poderes considerados equivalentes e equipotentes.
É bem possível que a nova ordenação mundial seja “mais democrática” do que a ordem unipolar que está sendo destruída, mas não há garantia de que não se transforme rapidamente numa “ordem oligopólica”, monopolizada por um grupo de no máximo duas ou três grandes potências. Não é impossível imaginar um pacto ou entente entre EUA e China, as duas maiores potências do grupo, desde que elas conseguissem istrar suas divergências e competição à morte, no campo tecnológico. Neste caso, o mundo poderia estar se aproximando da hipótese clássica de Karl Kautsky sobre a possibilidade de um “superimperialismo”.
Balanço feito, o certo é que não há o menor espaço e disposição de negociação entre as grandes potências, muito pelo contrário. Por outro lado, não há o menor espaço para uma “guerra mundial” que não venha a ser atômica, e por isso o mais provável é que ela siga sendo transferida ou protelada. O mundo está mudando numa velocidade muito grande, e a ordem mundial do pós-Guerra Fria chegou ao fim. Mas o “Ocidente” deve resistir, e tem poder para tanto; e seja como for, permanecerá dentro do sistema mundial como um de seus polos mais poderosos do ponto de vista econômico, tecnológico e militar.
Olhando para o futuro, o que se consegue ver, para além dos conflitos imediatos, é um mundo atravessando um período muito longo de flutuação e turbulência, instabilidade e imprevisibilidade. De qualquer maneira, durante este tempo de trepidação, que pode se prolongar até a segunda metade do século XXI, a defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e povos que se insurgem contra o imperium militar global exercido pelo Ocidente nos últimos 300 anos da História, mesmo que não saibam exatamente o que virá a ser essa ordem multipolar.
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