Pedro Kilkerry: o poeta marginalizado e sua revolução na literatura brasileira
A história de Kilkerry é, acima de tudo, um testemunho da exclusão histórica que permeou a literatura brasileira
Pedro Kilkerry (1885–1917) emerge como uma das figuras mais enigmáticas e negligenciadas da literatura brasileira. Nascido em um Brasil ainda marcado pelas cicatrizes da escravidão e pelas rígidas hierarquias sociais do pós-abolição, Kilkerry foi um poeta cuja obra transcendia sua época, antecipando experimentações estéticas que só seriam plenamente reconhecidas décadas depois. Filho do Simbolismo, sua poesia fundia musicalidade e hermetismo, traduzindo inquietações existenciais que reverberariam no modernismo e na poesia concreta. No entanto, sua genialidade encontrou pouco espaço na cena intelectual dominada por elites brancas, sendo relegada à obscuridade e resgatada apenas tardiamente. Este artigo busca reconstruir sua trajetória, examinando não apenas sua produção poética, mas também o contexto sociocultural que alimentou sua marginalização e impediu seu reconhecimento em vida. A história de Kilkerry é, acima de tudo, um testemunho da exclusão histórica que permeou a literatura brasileira e uma prova de que a inovação artística frequentemente floresce à margem.
Origens, Santo Antônio de Jesus e o Recôncavo Baiano: a Formação de um Poeta na Fronteira da Exclusão
Pedro Kilkerry nasceu em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, em 10 de março de 1885, um território historicamente vinculado à exploração de mão de obra escravizada e ao comércio agrícola. Embora a cidade prosperasse economicamente, a abolição da escravatura em 1888 não significou uma efetiva inclusão dos negros e mestiços na sociedade. Pelo contrário: a estrutura social manteve-se rígida, e a ascensão intelectual e econômica desses grupos permaneceu como um desafio quase intransponível.
Kilkerry, fruto da união entre um engenheiro irlandês e uma mestiça alforriada, cresceu num ambiente onde sua identidade racial determinaria sua posição social. Embora seu pai lhe proporcionasse o a uma educação mais refinada, sua mestiçagem ainda impunha barreiras invisíveis à plena aceitação nos círculos intelectuais da época. A Bahia do século XIX era um espaço onde as elites brancas ditavam os rumos da cultura, da política e do pensamento intelectual, e Kilkerry, mesmo extremamente talentoso, era visto como um outsider, um poeta sem lugar definido.
A Educação como Instrumento de Desafios e Superações
Em um ato de resistência, Pedro Kilkerry conseguiu ingressar na Faculdade de Direito da Bahia em 1906, contrariando as expectativas da sociedade que impunha obstáculos à ascensão de mestiços e negros. Estudar Direito era, à época, um privilégio das elites, pois o curso formava políticos, magistrados e intelectuais que compunham a classe dirigente do país.
Entretanto, ainda que tenha conquistado um diploma, Kilkerry nunca exerceu a advocacia de forma convencional. Sua paixão era a literatura, e foi nela que encontrou um espaço para explorar sua inquietação existencial e sua busca por pertencimento. Sua escrita carregava influências do Simbolismo europeu e do pensamento filosófico da época, o que conferia aos seus versos uma densidade rara, um labirinto de metáforas e musicalidade que anteciparia os experimentos modernistas.
A Linguagem como Resistência: Estilo e Influências
A poesia de Pedro Kilkerry se distingue pela fusão entre o hermetismo e a musicalidade intensa. Sua obra reflete sua marginalização e seu profundo desejo de comunicar aquilo que estava além da experiência cotidiana. Suas influências literárias avam por Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé e Paul Verlaine, poetas que definiam os rumos do Simbolismo europeu. O domínio do francês, do inglês e do latim permitiu que Kilkerry absorvesse correntes literárias estrangeiras, trazendo um tom sofisticado para sua produção.
Seus versos exploravam imagens abstratas, oníricas, construções metafóricas ousadas e sinestesias que transportavam o leitor para um universo em que o som e o significado se fundiam. Sua poesia era, de certa forma, um grito contra a invisibilidade imposta a ele pela sociedade e uma tentativa de romper com as convenções estéticas da época.
Marginalização e Legado: o Poeta Esquecido Que Antecipou o Futuro
Kilkerry ou a frequentar cafés e grupos literários de Salvador, publicando poemas em periódicos como Os Anais e Nova Cruzada, mas jamais recebeu reconhecimento em vida. O desprezo intelectual e as dificuldades financeiras o levaram a uma trajetória errante, onde a literatura se tornou tanto sua salvação quanto sua angústia.
É trágico que um poeta de tamanha profundidade tenha queimado parte de seus escritos, convencido de que jamais seria lembrado. No entanto, sua obra sobreviveu ao tempo graças a estudiosos como Augusto de Campos, que resgataram e destacaram seu valor como precursor da poesia moderna no Brasil. Seu estilo fragmentário e inovador antecipou tendências que só se consolidariam com o Modernismo, tornando sua obra essencial para compreender os caminhos da literatura nacional.
A inclusão de seus versos na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, organizada por Ítalo Moriconi, foi um reconhecimento tardio, mas necessário. Pedro Kilkerry, o poeta marginalizado, provou que a poesia sobrevive à injustiça do esquecimento — e que os versos podem transcender as barreiras impostas pela história.
O Poeta Marginalizado Que Queimava Seus Versos
Pedro Kilkerry (1885–1917) foi um poeta à frente de seu tempo, precursor da poesia moderna brasileira e um dos expoentes do Simbolismo nacional. No entanto, sua genialidade permaneceu à margem, ignorada pela crítica literária e silenciada pelos preconceitos da época. Desiludido com a falta de reconhecimento e profundamente atormentado por seu próprio talento não compreendido, Kilkerry desenvolveu um hábito inquietante: ele queimava grande parte de suas obras. Seus poemas, escritos com uma profundidade estética e uma experimentação única, muitas vezes eram consumidos pelo fogo antes de serem lidos por qualquer público. Esse gesto de autodestruição revela um artista que, ao mesmo tempo que buscava transcender os limites da linguagem, via sua arte como um fardo em um mundo que não estava pronto para acolhê-la.
A Trágica Obsessão pela Destruição de Sua Própria Obra
Se há um aspecto que torna a trajetória de Pedro Kilkerry ainda mais singular, é sua relação com seus escritos. Sem o respaldo das elites intelectuais e condenado a uma vida de dificuldades financeiras, o poeta começou a desenvolver um profundo pessimismo em relação ao futuro de sua obra. Com o ar dos anos, ele adquiriu o hábito de incinerar muitos de seus manuscritos, convencido de que jamais seria lido ou compreendido. Essa prática autodestrutiva carrega um simbolismo poderoso: era como se, ao destruir seus versos, Kilkerry estivesse apagando sua própria existência literária, recusando-se a deixar rastros em uma sociedade que o ignorava.
O incêndio de suas criações pode ser visto tanto como um gesto de frustração quanto como um ato consciente de resistência contra um mundo que o marginalizava. Kilkerry não se contentava com o papel de poeta esquecido e, ironicamente, preferia queimar suas obras a vê-las sufocadas pelo desprezo das elites culturais. O resultado dessa obsessão foi a perda de parte significativa de sua produção, tornando-o ainda mais enigmático na história da literatura brasileira.
ALGUNS POEMAS:
É o Silêncio
É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.
Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num ado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu o,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
..........................................
E abro a janela. Ainda a lua esfia
Últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.
E oh! minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.
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Sobre um mar de rosas que arde
Sobre um mar de rosas que arde
Em ondas fulvas, distante,
Erram meus olhos, diamante,
Como as naus dentro da tarde.
Asas no azul, melodias,
E as horas são velas fluidas
Da nau em que, oh! alma, descuidas
Das esperanças tardias.
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Amor volat
Não, não é comigo que ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como o seu bico em brasa...
Entrou-mo todo, enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! Que pássaro mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho já. Treme-me o o, e atrasa...
Olha-me bem, no peito, o rubro ninho aberto!
Hoje fúnebre, a piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio! e o meu leito deserto!
E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar largamente, um bocado
de músculos pingando a levar-me no bico!
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O Verme e a Estrela
Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!
E era assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrei. Azul-celeste
O céu, talvez, não pudesse ser...
Mas, agora! Enfim, por que não deste
Apenas um raio ao teu viver?
Olho, examina-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examine-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?
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Essa, que paira em meus sonhos
Essa, que paira em meus sonhos,
Em meus sonhos a brilhar,
E tem nos lábios risonhos
O nácar do Iônio — Mar —
Numa fantasia estranha,
Estranhamente a sonhei
E de beleza tamanha,
Enlouqueci. É o que sei.
Ela era, em plaustro dourado
Levado de urcos azuis,
De Paros nevirrosado,
Ombros nus, os seios nus...
E que de esteiras de estrelas,
De prásio, opala e rubim!
Na praia perto, por vê-las
Vi que saltava um delfim
Que longamente as fitando
Alçou a cauda, a tremer
E outros delfins, senão quando
Aparecer.
In: CAMPOS, Augusto de. ReVisâo de Kilkerry. São Paulo: Fundação Estadual de Cultura, 1970
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